segunda-feira, 27 de maio de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Sondava os motivos interiores da sua justiça, apaziguava as suas dores, partilhava as suas insónias, conhecia as suas solitárias surtidas às lajes de Santa Clara e ao Paço rústico que ficava além da Atouguia»

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«(…) O rei embatucou diante das crianças e não pôde evitar a torrente dos seus usuais horrores. Ó Deus, pensou, por que ordenaste a minha desgraça? Que fiz eu?! Prouvera à tua divina Providência ter-se embotado aquele cutelo. Por quê, por quê? Afundou-se por momentos nas águas nocivas das lembranças e das dúvidas. Vogava nelas uma fauna carnívora e mesquinha. Parecia nesses momentos perder o senso. Mumificava apavorado num perfil de pedra, que personificava a dor numa estátua eterna. Ai, se o pai grego da Tragedia tivesse vislumbrado o perfil de pavor deste nosso Afonso que peça não teria tirado para a sua história. A filha insistiu em vê-lo à superfície. - Razoai, senhor! Abandoneis estas crianças à triste sorte do desprezo e do ódio?
 - Senhora, ficai em sossego. As crianças irão ao cuidado do príncipe. Se quiserdes ora falarei com vosso mano para que nenhum estorvo se lhes faça na sua ida para a corte. - Muito me prazerá vosso falar. O príncipe em tudo atentará, estou certa. Ide, ide falar-lhe em mim e nestes pobres filhos meus. O rei passou vagamente pelas palavras da filha. Fora das ameias da alcáçova, no açougue da antiga construção romana, ouviam-se os ovelheiros queixosos da falta de pascigo. A primeira sazão entrara escassa de águas, seca e quente, pouco generosa para o gado. Eram vozes de aflição e súplica. O rei juntou-se ao coro dos tristes. - Que inditoso se mostra o existir no trigoso britar de todas as nossas esperanças.
Gonçalo, incomodado por aquela presença de geladas cás, voz espectral e funda de fantasma, começou a choramingar, procurando protecção nas saias da cuvilheira. Afonso pareceu então acordar dos seus delírios de homicida e lembrou-se da filha e dos órfãos do valido desaparecido. Partiu o rei e tardou o príncipe a chegar. Fora-se entretanto a primeira sazão do ano, aquela que traz os ardores frios do equinócio; chegara logo depois o calor abrasivo do estio, que nas plainas de entre Tejo e Odiana pode ser pavoroso como um incêndio de altas labaredas. Impacientava-se a rainha, mas conhecia os desassossegos em que o irmão andava. Agora, nas horas de maior angústia, em que manter justiça não lhe bastava ao olvido dos fracassos, dera-lhe para partir à desfilada numa montada jovem e desafogada para os lados da Atouguia, no termo de Alcobaça, onde, já depois da morte de Constança, passara os secretos e retirados anos do seu enlevo com Inês. Ali lhe nasceram os filhos e ali conhecera ele o mistério do amor. À beira do oceano, num porto da portuguesa costa, lambido pelas salsas ondas do desconhecido, sondou o além e percebeu que uma escada feita da matéria do amor ligava o céu e a terra. Mandara construir sobre o mar, nas imediações dum rústico lugar chamado Moledo, um abrigo de pedra e aí se retirara com a amante, vivendo com ela como se vivesse no Éden terreal. Tudo sorria, tudo luzia, tudo permanente e intemporal, num mármore colorido e supremamente aprazível aos sentidos. Era para esse singelo e rude lugar, conhecido na intimidade por Paço, porque nele tinham os dois amantes a corte da sua preferência, que o príncipe agora se retirava em rápidas e furtivas escapadas. Dizia-se que por lá tudo se conservava intacto, com os viridentes vestidos de Inês pendurados nos cabides e as suas jóias espalhadas nos estrados. Até o seu cheiro se mantinha intacto nas peles e nas mantas de lã em que outrora se enrolara nos frios e húmidos dias do Inverno.
Quando por fim o préstito do príncipe subiu à alcáçova de Évora, dos grandes incêndios dos dias de Verão apenas se via a erva carbonizada e rasteira dos campos. A temperatura descera e os primeiros arrepios do segundo equinócio arrefeciam as noites. À cabeça da comitiva, dando a esquerda ao príncipe, vinha um homem que cada vez mais lhe andava nas boas graças. Olhando o barrete de veludo preto adornado de caprichosa pluma que trazia na cabeça, as calças de seda golpeadas, o largo cinto de pele macia, lavrado a prata, depressa se percebia que se tratava de rico-homem, a mais alta categoria da nobreza a cavalo de então. Era João Afonso Telo, filho do antigo valido de Afonso IV e irmão do falecido Martim Afonso Teles, da família duriense Teles de Meneses. Mordomo-mor da casa do príncipe, ele acompanhava todos os seus passos e não havia segredo que com ele não repartisse. Sondava os motivos interiores da sua justiça, apaziguava as suas dores, partilhava as suas insónias, conhecia as suas solitárias surtidas às lajes de Santa Clara e ao Paço rústico que ficava além da Atouguia.
Saíra homem aguisado, sages mesmo, destro em pensar as feridas que tanto torturavam o príncipe. Quando as labaredas ferviam na alma deste, fazendo dele um braseiro de desconcertos cegos, João Afonso Telo sabia acorrer com o sopro certo da refrigeração, arrefecendo a temperatura ingente e diminuindo o impulso destruidor daquele fogo. Um tal moderador fazia-se cada vez mais necessário junto dum injustiçado como Pedro. Uma vítima da iniquidade passa de pressa da infelicidade mansa à inconveniência colérica em a chuva que faz renascer a esperança, a terra estiola numa gritaria seca de revoltas. O encontro entre os dois irmãos foi peco como um arbusto riçado pelo ar crespo do mar. Dum lado, estava Maria, com a história magoada da sua vida, cujo epílogo fora a chacina recente de Toro e as crianças sem arrimo que ali a rodeavam, e do outro estava Pedro, com o infortúnio e a desnorteada solidão da sua perda. Não se viam desde os tempos em que Inês, exilada em Albuquerque, na fronteira de Castela, recebia as furtivas visitas do jovem Pedro. Passara-se isso ainda em vida de Constança Manuel, numa época em que os enciumados impulsos da princesa, desejosa de fruir por inteiro o corpo do marido, obrigaram o sogro a ordenar a expulsão da aia do reino. Depois seria a própria Constança a chorar-lhe a falta, falecendo, ao que se diz, com o nome de Inês nos lábios chorosos. Nessa época era o príncipe uma alta torre de rija pedra, encimado por uma cimalha de fogo e de luz». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT