A Corte e o Conselho
«Felizmente,
ao lado do rei estavam os infantes que, pelo contrário, pesavam todas estas
cousas, sem temor nem repugnância pela novidade. E sobre todos, o infante
Henrique insistia nos inconvenientes da empresa de Granada. Por isso, no dia
seguinte o pai debateu sozinho com ele o assunto, e ficou também convencido
quanto aos dois últimos pontos discutidos em conselho. Pulando de alegria. O
infante Henrique foi dizer em segredo aos irmãos o resultado. Estava decidido
que iriam a Ceuta!
Cumpria
agora proceder com toda a cautela e segredo nos preparativos da expedição. Era
necessário inventar um pretexto para os armamentos, que logo se tornariam
evidentes. Era necessário, antes, reconhecer Ceuta, ver o ancoradouro, não ir
ás cegas, com precipitações que podiam ser funestas. Não havia pressa. Os
preparativos, apimentados pelo encanto do segredo, saciavam a necessidade de acção
dos rapazes que o pai olhava com amoroso encanto; e a rainha, mais grave agora,
que o louro dos seus cabelos se tornara em branco, abraçava-os, beijando-os
serenamente na fronte. Decidiu-se logo confiar o segredo ao prior do Hospital, homem
agudo e discreto, enviando-o por mar à Sicília negociar fingidamente o
casamento do infante Pedro com a rainha viúva (viúva de Martinho I, cuja morte,
determinando a união da Sicília ao Aragão, 1409-1504, a deixava sem reino. que
o pedira. Era o mais plausível dos pretextos para visitar Ceuta, quer na ida,
quer na volta. O prior saiu com efeito de Lisboa na armada, foi à Sicília, tratou
o casamento de que se não tratava, e tendo estado em Ceuta, na ida e na volta,
trouxe as informações mais completas. Boa praia, ancoradouro excelente.
Mas
desde que a empresa de Ceuta se decidira, o rei que, sentindo-se outro homem,
parecendo-lhe voltados os tempos antigos, rejuvenescia, acordando com o
estrépito das armas, vendo-se já de espada em punho no meio do assalto: o rei,
que não queria, nem podia atender senão aos preparativos militares da campanha,
entregou a expedição dos negócios da justiça e fazenda ao infante Duarte. Com os
infantes Pedro Henrique, tanto haveria
de trabalhar nos feitos que pertenciam para sua ida, que de outros sem grande necessidade
se não entendia curar. Escrupulosamente, com a pontualidade inglesa da
mãe, o infante Duarte, a quem faltava a energia e a audácia do pai, renascidas
no irmão Henrique, tomou tanto a peito o encargo, com o seu virtuoso sentimento
do dever, exagerado pela verdura dos anos, e tanto se esfalfou, que adoeceu. Levantava-se
cedo, ouvia missa, ia à Relação ao despacho, até ao meio dia, hora de jantar. À
mesa dava audiência, recolhendo-se depois para uma sesta brevíssima, suprimida
quase sempre, porque às duas horas estavam com ele os vedores da fazenda e os
do conselho, com quem trabalhava até às nove da noite. Quando o largavam, ceava,
ficando com os oficiais da sua casa até às onze horas. Ao monte e à caça raras
vezes ia: descurava os exercícios do corpo, entregue aos trabalhos sedentários.
Ao próprio paço de el-rei seu pai faltava com insistência: só o visitava quando
o andamento dos negócios o exigia. Pela primeira vez aparece na cena politica
portuguesa o príncipe burocrata (começa neste período a reforma da legislação
sobre os judeus, adiante estudada, sobre o texto das Ordenações), de que a
Hespanha teve em Filipe II o mais bem acabado exemplar. De constituição débil,
acrescentando necessariamente à fadiga própria do trabalho o cansaço de
espirito proveniente da sua virtude escrupulosa, exagerando as dificuldades,
estonteando a cabeça, e julgando dever matar-se tanto mais, quanto maiores eram
os problemas, o pobre infante cedeu ao peso da tarefa, e caiu enfermo de uma
anemia, ou de uma dispepsia, caracterizada pelos sintomas do que ainda
popularmente se chama hipocondria e que ele próprio denomina humor merencório.
Os
médicos aconselhavam-lhe que bebesse
vinho pouco aguado, dormisse com mulher, e deixasse grandes cuidados. Era
uma tristeza constitucional, um desgosto profundo, com um medo atroz da morte,
que lhe durou três anos, começando a curar-se na dolorosa crise do falecimento
da mãe, quando, tendo a corte ido de Sacavém para Odivelas, a rainha enfermou
da peste. Dissiparam-se os medos, desapareceram os sintomas gástricos; e depois
dizia sentir-se, graças a Deus, mais ledo do que era antes da doença. As
ambições heróicas do infante Henrique deram de si o que sabemos. A doirada
ilusão de esperança que acendia em fé os homens nas alvoradas dessa grande época
a que se chamou Renascença, produziu os frutos cujo travo nos amarga
hoje na língua; mas o que dura, o que fica, e durará, e ficará enquanto houver
homens, é a bondade modesta, tão humilde como a grama, mas tão vivaz, tão
resistente como cila também. Desfazem-se todas as quimeras, desmancham-se todas
as ilusões, e ela fica, a bondade imorredoura!
Nunca
houve na terra bondade maior do que a do infante Duarte. Escrupuloso, metódico,
pontual no cumprimento dos seus deveres, sem assomos de vaidade, nem violências
de orgulho, sem maior grandeza de ânimo, mas com um dom de resignação superior,
o príncipe por sorte infeliz é um exemplo de quanto as qualidades passivas, nem
sempre excelentes para dar serenidade à consciência dos reis, são inadequadas à
conquista daquilo a que por uso se chama a fortuna, amante dos audazes e filha
dilecta da sorte que é cega». In Joaquim
Pedro Oliveira Martins, Os Filhos de D. João I, Casa Editora Antiga Livraria
Chardron, Lugan & Genelioux, Successores, Porto. Lisboa, Imprensa Nacional,
MDCCCXCI, Library University of Toronto, Oct 6 1967 de 3 1761 042963371.
Cortesia
de Universidade de Toronto/JDACT