sábado, 18 de maio de 2013

A Hora da Estrela. Clarice Lispector. «Ao afirmar que ‘Tudo no mundo começou com um sim’, o narrador revela que sabe que as coisas se criam por um acto de vontade e de afirmação. Sabe, portanto, do modo pelo qual algo passa a existir. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou»

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«(…) Pela perspectiva filosófica a os limites e alcances do conhecimento o mundo mediante à palavra e a consciência, através das quais o ser humano se distingue dos outros seres pela perspectiva social, investiga os impasses criados pela separação dos indivíduos em diferentes grupos, dando destaque à inserção do escritor e do nordestino na sociedade brasileira; pela perspectiva estética, sonda o gesto criador e o trabalho na busca da expressão que inaugure uma apreensão original do real. Os três aspectos, é claro, apresentam-se de forma imbricada no livro. Pelo ângulo filosófico, a evidência de que as origens do ser se perdem no tempo e de que é impossível voltar à época em que as coisas acontecem antes de acontecer, leva o indivíduo a um estado de perplexidade. Ao afirmar que Tudo no mundo começou com um sim, o narrador revela que sabe que as coisas se criam por um acto de vontade e de afirmação.
Sabe, portanto, do modo pelo qual algo passa a existir. A compreensão deste algo, no entanto, esbarra naquilo que o antecedeu e que possibilitou a expressão de uma vontade, possibilitou haver o não e o sim, para que, então, a escolha se fizesse. Mais importante do que o modo pelo qual algo que não existia ganha existência, há o problema fundamental da origem, do começo de tudo, que se situa em uma ordem temporal inapreensível pelo homem: Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Assim, a pessoa se faz intermináveis perguntas e vive uma série de faltas. A única verdade indiscutível são as existências individuais. Intui, por certo, a identificação de todos em uma unidade Todos nós somos um, mas a unificação se mostra principalmente pela carência e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro, existe a quem falte o delicado essencial. Fica apenas a constatação de que cada ser é um fragmento ou parte de algo. Daí projectar-se, como sentido último da realidade, a realidade que sempre está faltando.
Mais dolorosamente ainda, existe a consciência de cada um, advertindo sobre este vazio, e o empenho em transpô-lo. A consciência aflora como atributo humano paradoxal: dá instrumentos para se tentar responder a essas indagações, possibilita que se busque o sentido da vida e também desponta como fonte de dúvidas, assinalando a ruptura de cada ser individual com um modo de existência originário, em que tudo era um todo cheio de harmonia. A consciência é condição de liberdade e, simultaneamente, aprisionamento. Esta nostalgia de uma integração total com o Cosmos confere uma certa tragicidade ao projecto do narrador. Pois ao mesmo tempo em que sabe que é um ser independente e gosta de sê-lo, anseia por uma identificação completa com o outro, por uma comunicação directa, sem obstáculos, o que acabaria anulando a sua individualidade, a sua autonomia.
A vivência de culpa, como se houvesse um erro fundamental a ser sanado, desponta desde o primeiro subtítulo do livro A culpa é minha e sempre retorna. É ela um dos sintomas deste desgarramento do homem no mundo que, vendo cerradas as portas de acesso à unidade originária, vai investigar, solitário, a dinâmica de sua existência individual. A escolha de Macabéa, anónima, incompetente para a vida, integra essa determinação, que inclui a busca de regressão ao inumano Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira e a expiação de uma possível culpa.
O narrador, perpassado por toda sorte de indagações sobre o ser e o existir, atormentado pela incompletude e pela dualidade da natureza humana para as quais as respostas são precárias, converte a busca em sua única certeza. Daí decorrem pelo menos dois movimentos centrais da narrativa. Primeiro, como toda busca e toda pergunta são busca de algo e pergunta para alguém, o narrador, para saber, tem de desdobrar-se, tem de dialogar. Aquilo que, em uma situação comunicativa banal, passa despercebido projecta-se para o narrador como condição essencial do ser: apreender a si mesmo inclui o confronto com o outro. Ao mesmo tempo, essa projecção traz implícito o retorno para si mesmo, quando se tenta unificar em um único sujeito individual os elementos que estão presentes nos outros seres do Universo». In Clarice Lispector, A Hora da Estrela, Editora Francisco Alves, correção de Doralice, CDD - 869.93, CDU 869.0(81)-3.

Cortesia de Editora F. Alves/JDACT