«(…) Logo na tarde desse dia aquel'outra mulher que agitava por cima
das cabeças dos do seu bando um bocabo de pão o levou a esquecer a da
madrugada. Um bocado de pão? Um bocado de pão. Casqueiro de segunda, rijo, negro.
Chegara de terra longínqua, triste, seca. Do deserto. Por isso os foliões da
política a saudaram com um calor positivo e grave. Reparando melhor, certificaram-se
de que nos joelhos, nas mãos, nas maçãs do rosto, trazia sinais de lepra.
Procuraram isolá-la do corpo da manifestação sem contudo a expulsarem dela,
enquanto de boca em boca era comentada a sua presença com veladas exclamações
de horror. Os organizadores do desfile foram peremptórios: era preciso salvar
as aparências, custasse o que custasse. Ela era um trunfo tão decisivo, o deserto, o casqueiro, o aspecto, para
que tudo se passasse como fora previsto, para que tudo parecesse como era
preciso que parecesse. Na manhã seguinte, os jornais afectos aos optimistas
publicar-lhe-iam a fotografia nas primeiras páginas, com relevo para o pedaço de pão que não parara de
agitar acompanhada de grandes títulos em caixa alta. Não diriam, porém, uma
única palavra acerca dos motivos que levaram os radicalistas pequeno-burgueses,
finda a manifestação, a correrem como loucos, para as urgências dos hospitais,
a desinfectarem-se.
Antes de ela partir para a sua terra distante, seca e triste,
Bernardes, distraído, sem suspeitar da natureza do pavor que pusera em
debandada tantos propagandistas da luta contra a fome, propôs-lhe
fazerem amor no apartamento dele. Para começar a esquecer Alda no concreto. A
mulher esteve sempre muda. Acompanhou-o e, na penumbra do quarto, despiu-se.
Manteve-se nua durante alguns segundos. Bernardes desceu então ao pormenor, fazendo
aparecer a luz, fazendo-se luz no seu espírito. Púbis em chaga disforme.
Horror! A pobre voltou a vestir-se e, sem falar, abalou.
Um sorriso. Um sorriso na tarde, com endereço. A classe operária
mobilizada no Terreiro do Paço. Esgaravata, Bernardes. Esgaravata. Busca a
verdade, busca. Talvez aqui, junto a estes. Puros. Escuta-lhes as receitas
infalíveis para os teus pesares e suplícios. Parecem dignos. Um pouco
convencidos de que sabem tudo do mundo, mas dignos. Dezenas de respeitáveis fantasmas
alimentam a sua sinceridade. Dezenas?
Que digo! Milhares. Os de Outubro, Cantão, Moncada. Põe de lado a ideia de que
Salazar tem mais a ver com a revolução proletária portuguesa do que Fidel. Que
não entender isto é evitar deliberadamente o nó do problema. Bebe do que eles
bebem, verás o que eles vêem. Nada perguntes. Quem pergunta leva roda de
provocador.
Aceita. No aceitar é que está o ganho. Põe, Bernardes, no sorriso,
apreço onde está ironia. Será o sorriso de outra alma, de uma súbita vitória.
Deixa por ora Alda e o velho. Entrega-te. Bebe e bebe. Dá as mãos. Forma cordão.
Rompe. Avança. Morde as palavras novas. Raiva,
homem. E um justo ódio por estandarte. E uma justa luta à sobremesa. E um
justo prémio dentro de cem anos. Havia mesmo ali lugar ao espanto, olaré!
Bernardes, varado, nem queria acreditar. O filho da p… do Lopes, (estarei enganado no nome? Não será outro P?)
de megafone em punho, braçadeira a comandar as hostes, imagine-se. O sorriso de
Bernardes a morrer no trauma. A tornar lentamente estúpido o apreço. Revolução
do car….! O sacana do Lopes (ou será P?)
naquilo, a devorar palavras de ordem. Boininha à Ché, barbicha rala e um
comprido blusão de caqui esverdeado. E aquele carpinteiro naval da Lisnave,
comunista emiele, todo feito com o Lopes, o aliado Lopes (não será o outro P?), que se calhar se
passou para o poder popular (com o seu
boné? Será?) por não o terem indemnizado enquanto accionista da Banca.
Ofereceria ele para quartel, à Isabel do Carmo, a sua luxuosa vivenda no
Guincho? Aí, ó grande Lopes! É assim mesmo! Em vez de seguir para a Trafaria
sob a batuta do Lopes, dirigiu-se para a casa do tio-padrinho a fim de se
avistar com a famelga, meditando, pelo caminho, no estranho fenómeno que põe
fascistas dentro da revolução e antifascistas fora dela». In
Júlio Conrado, Era a Revolução, Editorial Notícias, Lisboa, 1997, ISBN
972-46-0859-X.
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