«(…) Num
estilo que prefere as oposições conceptuais e os semi-paradoxos ao oxímoro martiniano e elege como personagem
não o Portugal de Oliveira
Martins, mas um nós
comprometedor e comprometido, Eduardo
Lourenço construiu o seu discurso sob a égide do pensamento de Fernando Pessoa e de algum pragmatismo
de Mouzinho da Silveira, escolhidos para epígrafe de Labirinto da
Saudade, e conforme diz no Breve
esclarecimento de introdução ao mesmo livro, estimulado, por um lado,
pela mudança histórica dos últimos
quatro anos e, por outro, pela leitura
recente de livros de índole diversa, mas todos eles exprimindo uma vontade de
renovação da imagerie habitual da realidade portuguesa,
Eduardo Lourenço empreende uma
reflexão crítica, marcada por uma inteligentíssima ironia, sobre os diversos
discursos identitários de Portugal, sobre os seus mitos culturais e sobre as
imagens por eles criadas no imaginário nacional. Não nos poupando a pele
imperial, despida sem demoras, nem as tentações de agora tratar o império da ficção como o substituto da
realidade historicamente perdida, nem muito menos as facilidades
iconoclastas de tudo substituir ou escamotear como um exercício de vómito dessa
pobre pátria salazarista colonizadora
por excelência, que durante décadas nos habitou, Eduardo Lourenço adverte-nos que
nalguma realidade e muito na ficção nós fizemos África e África, na realidade e
nalguma ficção, se terá feito também portuguesa. É nessa inter-realidade e
nessa inter-ficção, com o máximo de realismo, que nos podemos encontrar.
Neste difícil e ambíguo compromisso entre um passado que se quer expurgar das
ficções e abusivas interpretações que o Estado Novo dele tinha feito e um
futuro de vocação europeia que se quer construir em resposta às novas
coordenadas políticas, geográficas e culturais, sem deixar, de uma maneira ou
de outra, de integrar um passado mítico e histórico, Eduardo Lourenço reinventa-nos, por mediação pessoana, em recorrentes e poderosas metáforas de viagem,
de que a imagem de Portugal como navio-nação
é a mais expressiva, ao rever-nos no mais carismático símbolo nacional em que
nos habituámos a ganhar e perder a nação. Esta substituição, não substitutiva,
do nosso bilhete de identidade, que o discurso de Eduardo Lourenço nos oferece, veiculada por uma voz mais pessimista
que optimista, vinha ao encontro das nossas mitologias poéticas e reflectia as
nossas mitologias orgânicas de análise da nação. Apontava-nos assim o ensaísta
para uma imagem de um Portugal europeu, mais
diáspora que fronteira, que ia ao encontro, não só da fragmentação e
dispersão de Portugal nas suas aventuras imperiais e nas suas Guerras
Coloniais, mas também da errância portuguesa das emigrações e dos exílios, que
tinham levado Portugal a uma dispersão, não só para outras terras, mas também
para outras línguas e culturas e que, no pós-25 de Abril, procuram o seu centro
num Portugal de identidade mais ampla e difusa, baseada na língua e na cultura
que a nossa viagem espalhara, e de que hoje resulta uma partilha cultural que
se define como mundo de língua portuguesa.
Camões,
o poeta da língua portuguesa, mas também do império terreno que resulta dos
Descobrimentos exaltados em Os
Lusíadas, e autor tão perturbadoramente usado e abusado pelo regime de
Salazar como símbolo da dimensão imperial portuguesa, não poderia ser no
imediato o discurso poético do final desta aventura imperial excessiva, que
acabava com cravos nos canos das espingardas depois de treze anos de guerra lá
longe em África, de onde iam chegando homens desfeitos, pedaços, cartas,
poemas, fragmentos de uma nação que ia deixando de ser, o que não nos permitia
ver no 25 de Abril a revolução
pacífica que todos apregoavam. Ele estava manchado de sangue por treze anos de
guerra em África. Por isso, o lado da conquista do poema camoniano, que inquieta o leitor contemporâneo e que tão
exacerbado fora pelo discurso salazarista, perturbava um país recém chegado da
Guerra Colonial e ainda agoniado com toda a escola e mitologia salazaristas que
nos tinham feito, durante décadas, recitar os versos guerreiros do poema, marcando-nos
a alma para sempre com imagens que, no imediato da revolução, se pretendiam
esquecer e diluir na imagem difusa e encantada da jovem democracia. Mas Camões poderia ser o patrono dessa
cultura e dessa língua em pedaços pelo
mundo repartida, cujo arranque nos é narrado na epopeia nacional, que
simultaneamente nos consagrou como vanguarda da Europa de então, onde agora nos
queríamos recolocar, e nos deseuropeizou, ao nos lançar para sempre no
sonho imperial, que também não queríamos abandonar. Na hora pós-colonial, o
resultado da aventura de dispersão e viagem narrada por Camões seria também e mais adequadamente interpretada à luz do
outro patrono da língua portuguesa, Fernando
Pessoa, não tanto na frase inicialmente pronunciada por Bernardo
Soares / Pessoa em reservada
intimidade, minha pátria é a língua
portuguesa, mas nos contornos que a intensa citação da frase lhe
acrescentou, ao ser glosada por inúmeros poetas e escritores que, ora tinham
travado com as teses de Pessoa um
diálogo plural numa oposição ao imaginário imperial salazarista, ora, já num
contexto pós-colonial, tinham encontrado na expressão a formulação do
sentimento de pertença a uma cultura universal de língua portuguesa». In
Margarida Calafate Ribeiro, Uma Outra
História de Regressos: Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa, Centro
de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Cátedra Eduardo Lourenço,
Universidade de Bolonha, Instituto Camões, Dezembro de 2007.
Cortesia
de Instituto Camões/JDACT