«(…) Como nenhum a outra, a concepção do mundo e a metodologia dela
decorrente que servem de referência aos trabalhos de António José Saraiva ou
de Óscar
Lopes desejam-se totais, exaustivas, científicas, omnicompreensivas. É
natural e todas as hermenêuticas visam qualquer coisa de semelhante, mesmo se o
não confessam. Não nego, pois que a época e a obra de Gil Vicente sejam
susceptíveis de uma interpretação marxista e que, em última análise, só uma
interpretação desse tipo se possa ter como realmente explicativa. Mas da formulação de um ideal metodológico à possibilidade
da sua incarnação concreta vai um oceano. Em Portugal, até ao presente momento,
só existem interpretações verbalmente
marxistas ou marxistas ao nível da intenção, reflexo de uma vigência teorética
até ao presente enleada em mitos e esquemas de um grande simplismo, fora do
domínio particular que o autor de Miséria
da Filosofia explorou. As primeiras investigações sérias de História da
Cultura de um tal ponto de vista começam apenas a tentar-se na Alemanha, na
Itália e na França. Tudo o mais pertence à pré-história, ou à história dogmática
de uma práxis que se dá como projecto a fidelidade ao real e a esse título se baptiza
com o belo mas inquietante nome de realismo.
Como nos aparece a prática de um tal realismo crítico?
Como a fonte de extrapolações que a crítica burguesa tradicional há muito havia
eliminado. Segundo o marxismo, a
verdade, ou a realidade de ordem
espiritual e a expressão de uma outra ordem subjacente de que ela é a máscara.
A máscara das máscaras é a religião, mas por isso mesmo é que através de um
exame sério de tal superestrutura é possível colher, como o negativo, a
situação histórica efectiva que ela mascara. Não vamos discutir aqui o bom
fundamento desta afirmação do marxismo clássico, neste momento seriamente posta
em causa em círculos marxistas consideráveis, o que não percebo, diga-se de passagem,
como pode ser feito sem tocar as raízes mesmas do marxismo. Uma superficial compreensão
dessa ideia fundamental do marxismo traduziu-se na prática num menosprezo
visceral da crença enquanto tal, pois
que teoricamente e segundo a letra, é ela afectada do coeficiente de suprema
ilusão. Daí que os nossos críticos marxistas se julguem na obrigação de pôr em
relevo o que eles chamam o lado
concreto, a experiência humana realista, quotidiana, desmitificante por
essência, dos autores que lhe caem nas mãos e, por outro, o de tentar menosprezar, literalmente, ter em menos, o que nesses outros,
segundo a teoria, e do domínio da ilusão,
quer dizer, as opções espirituais ou religiosas.
O processo é sobretudo fatal quando se trate de um autor como Gil
Vicente que se quereria incluir na falange dos avatares lúcidos, realistas, desmistificadores, progressistas e, ao
mesmo tempo, apresenta obra penetrada de ideologia religiosa, como eles dizem,
para não dizer mitologia religiosa, o que sob a sua pena seria pleonástico.
Quer dizer, teoreticamente consideram essa excrescência como nula e psicologicamente são levados
portanto a anulá-la em vez de fazer o que marxisticamente se impunha que era
lê-la, e lendo-a, explicar o que ela encobre». In Eduardo Lourenço, Destroços, O
Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva, 2004, ISBN 972-662-945-4.
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