segunda-feira, 27 de maio de 2013

Guerreiro e Monge. Romance Histórico. Campos Júnior. «Adivinhava-se-lhe no olhar, calmo e firme, um grande ânimo resoluto, a intrépida serenidade leonina, cujas cóleras seriam talvez formidáveis. Montava um soberbo cavalo baio da Andaluzia, coberto de opulentos ‘jaezes’»

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O Bastardo
Na Ribeira das Naus
«(…) Um grupo de cavaleiros, que vinha do lado das Portas da Moeda, afastam-se da multidão e fora colocar-se na praia contígua a Vila Nova de Gibraltar, em sítio desafogado, donde se viam bem os navios em construção na Ribeira e se abrangia de um lance de olhos uma parte, porventura a mais bela do soberbo panorama da cidade, desde a torre de menagem do castelo, arrogante e formidável como um velho guerreiro medievo na sua rija armadura de batalha, à fímbria de espumas do Tejo, a espreguiçar-se pelas areias, nas indolências de um lago que o sol houvesse enlanguecido. Compunha-se o grupo de um homem de mais de cinquenta anos, de um rapazinho de pouco mais de doze e de dois escudeiros.
De forte musculatura, o rosto alvo e levemente rosado, que as rugas cruzavam profundamente, as longas barbas já embranquecidas, o velho cavaleiro tinha a distinção e o aspecto de um homem de guerra. Percebia-se-lhe a altivez de quem está habituado ao mando. Adivinhava-se-lhe no olhar, calmo e firme, um grande ânimo resoluto, a intrépida serenidade leonina, cujas cóleras seriam talvez formidáveis. Montava um soberbo cavalo baio da Andaluzia, coberto de opulentos jaezes. Ao lado do velho cavaleiro, montando um morzelo de pequena estatura, aprumava-se garbosamente o seu juvenil companheiro, relanceando em volta de si um doce olhar de sonhador. Era formoso e gentil. Os seus grandes cabelos loiros anelados davam-lhe o aspecto de um desses belos arcanjos, ideados pelos poetas e pelos sonhadores do seu século.
De quando em quando se fitavam nele os olhos do cavaleiro de barbas embranquecidas, envolvendo-o num olhar de imenso amor. - Aqui nos quedaremos, Lourenço. Olhai, daqui se vê a contento o arcaboiço das naus da Índia e toda essa turbamulta de curiosos – disse para o pequeno. - Onde vos aprouver, pai e senhor - volveu o juvenil cavaleiro. E de pé nos estribos, relanceou um longo olhar por todo aquele formoso e estranho panorama, que lhe deslumbrava o espírito. – Que lindo isto é! - exclamou - E que donairosas caravelas ali no Tejo! E ficaram-se a contemplar o trecho da cidade.
Atrás deles, os escudeiros conversavam despreocupadamente. Era opulento o trajar daqueles dois escudeiros. Trazia o velho fidalgo, que tudo nele estava indicando a sua alta jerarquia, um gorro de duas voltas com firmal de oiro, gibão de brocado e seda, pelote de cetim alionado, de largas mangas golpeadas, ao uso da época. Pendiam-lhe do cinto, marchetado de prata, um punhal e uma espada de punhos doirados e de bainhas de veludo com bocais e ponteiras de prata doirada. Brilhavam-lhe grandes esporas de prata nas altas botas cordovesas. Ondulava uma pluma branca no gorro do juvenil cavaleiro, e eram mais vivas as cores do seu gibão. Não vestia pelote, não trazia colar de oiro, nem espada e punhal. Outros cavaleiros apareceram na praia. A nobreza, que se não incorporava na comitiva real, afastava-se dos grandes ajuntamentos.
Ainda não havia seges em Lisboa, e nenhum fidalgo andava a pé por entre as multidões, a não ser no cortejo de alguma procissão. Só não apareciam a cavalo nestas grandes reuniões públicas, sem carácter religioso, os que, pela idade ou pelas enfermidades, já não podiam sair senão de liteira. Os próprios eclesiásticos andavam frequentemente a cavalo. Da banda das Portas Novas do Mar entrou na praia um cavaleiro, coberto de pó, e em traje que indicava uma larga jornada. Era seguido por um velho criado. - Guarde-vos Deus, senhor dom Francisco. Bom encontro o meu, por vida minha! - disse o recém-chegado, acercando-se do velho fidalgo e acariciando o rosto do pequeno.- Vós por aqui, sr. Afonso de Albuquerque! No paço vos julgava, para acompanhardes El-rei, sr. estribeiro-mor!... - De Sua Alteza alcancei licença para ir à minha quinta do Paraíso, e por lá estive toda a semana que passou. Vinha ali às Portas Novas do Mar, quando dei conta da gente que para aqui se encaminhava. Perguntei o que havia, e então me disseram que Sua Alteza viria agora ver e dar nome às naus da Ribeira. Não era tempo de ir ao paço para acompanhar El-Rei, nem deste modo, coberto de pó, me seria dado ajuntar-me à comitiva real. Assim, pois, tive por melhor torcer caminho e ver daqui a passagem de El-rei.
 - E bom foi, que assim me dais o prazer da vossa companhia, sr. Afonso de Albuquerque. - Bem melhor fortuna é a minha, que me trouxe aqui, dom Francisco. - Com este belo tempo criador há-de estar um encanto a vossa quinta de Alhandra. - Estão lindas e de boa promessa todas aquelas veigas e colinas. E desta forma continuaram conversando, afectuosamente, Francisco de Almeida, o ilustre filho do primeiro conde Abrantes, e Afonso de Albuquerque, o nobre filho dos senhores de Vila Verde, o homem que fora educado na corte de D. Afonso V e era estribeiro-mor de El-rei João II». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.

Cortesia de L. R. Torres/JDACT