Literatura de Corte:
Cantigas de Santa Maria e Cantigas de
Maldizer e D’escarno
«(…) Abertas às
solicitações mais diversas, as Cantigas de Santa Maria reelaboram
originalmente motivos narrativos de várias origens: remontam naturalmente à
tradição popular, às narrativas marianas em latim medieval, aos Miracles de
Nostre Dame de Gautier de Coinci, mas reproduzem também, muitas
vezes, episódios da vida vivida, temas clássicos, contos devotos e também profanos.
A colectânea apresenta-se-nos como uma obra ainda em elaboração que se vai
enriquecendo com novos textos até ao fim da vida do rei Afonso. O monarca aparece-nos como um hábil narrador (da
maior utilidade para a análise dos textos é a magistral edição dirigida por Walter
Mettmann, um verdadeiro monumento da filologia românica ibérica). Reelabora a
matéria de forma original, reservando-se muitas vezes para regressar aos temas
preferidos e desenvolver-lhes os aspectos inéditos, ao mesmo tempo que também
utiliza sabiamente no conto os recursos do acompanhamento musical.
Pense-se, por exemplo,
no tema da abadessa prenhe, que
veremos desenvolvido, com recursos literários bem diferentes, também pelo autor
do Orto do Esposo: a ela é dedicada a sétima das cantigas em
honra da Virgem: Esta é como Santa Maria livrou a abadessa prenne, que adormecera ant’o
seu altar chorando. Era um conto muitíssimo difundido na Idade Média,
que figurava nas colecções em latim medieval, onde o vai buscar o compilador
cisterciense do Orto, nos Miracles de Nostre Dame, nos Conti
morali de um anónimo de Sena, etc.
Enquanto as outras
redacções, com maior ou menor ironia, parecem todas adaptar-se, no entrecho e
nos pormenores narrativos, ao modelo latino medieval, Afonso não parece
preocupar-se com os seus antecedentes, ainda que seja evidente o conhecimento, pelo
menos, da versão de Gautier de Coinci, cortando da história
a secção que lhe interessa e reservando-se para desenvolver num outro lugar
(cfr. as cantigas 55 e 94, alguns dos motivos que aqui pusera de parte.
Assume, portanto, grande relevo a ingenuidade estupefacta da abadessa que
adormece chorando diante do altar, enquanto se exacerba a contraposição entre o
erro da mulher e a alegria do milagre que a liberta, com o qual de resto o
conto se conclui, sem o apêndice da confissão pública, como nas fontes, e sem
que seja feita qualquer alusão relativa à sorte da criança precocemente dada à
luz e enviada para Soissons por exigência da rima, nas outras redacções
era, em vez disso, educada por um santo e destinada a tornar-se bispo:
Mas a dona sem tardar
a Madre de Deus rogar
foi; e, come quen sonna,
Santa Maria tirar-
lle fez o fill’e criar-
lo mandou en Sanssonna.
Com poucos traços são
analisadas todas as etapas essenciais da narração, com aquela rima em -onna que aparece em
posição estratégica para pôr em comum lugares distantes. O pecado, devido às
más artes do diabo:
Mas o demo enartar-
a foi, por que emprennar-
s’ouve dun de Bolonna,
…
A artificiosa hilaridade
com que a abadessa se apresenta ao bispo, interpelado pelas monjas hostis:
E fórona acusar
ao Bispo do logar,
e el ben de Colonna
chegou y; e pois chamar-
a fez vẽo sen vagar,
leda e mui risonna…
A reabilitação final:
e pois lle vyu o sẽo,
começou Deus a loar
e as donas a brasmar,
que eran d’ordin d’Onna…
Mas, prosseguindo na
leitura da colectânea, eis que na 55.ª
cantiga de Afonso se retoma o motivo da monja grávida, contaminando-se com
um outro, difusamente exposto na cantiga 94): o da fugitiva cujo lugar fora ocupado pela Virgem. Os
elementos da narração que haviam sido apenas aflorados na sétima cantiga são
aqui habilmente desenvolvidos. A figura do sedutor, ímpio e enfatuado, é um
padre verdadeiro, un preste de corõa,
que não tem escrúpulos em abandonar a mulher quando se apercebe que ela está
grávida, depois de a ter longamente mantido consigo em Lisboa, assume contornos
precisos:
… enton o crerig’astroso
/ leixou-a desanparada,
e ela tornou-sse logo / vergonnosa
e coitada,
andando sempre de noite /
come sse fosse ladrõa.
Paira sobre a história uma indefinível atmosfera de prodígio, quando,
no seu regresso ao convento, a monja é acolhida sem surpresa, sem que ninguém
mostre ter notado a sua longa ausência. O filho que tem no seio é-lhe levado
por um anjo e a mãe não consegue voltar a vê-lo senão quando já velha, numa
cena de alegria, como todas em que se manifesta a intervenção da Virgem, plena
de ardor místico». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa,
Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Instituto Camões, volume 38, série
Literatura, 1979.
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Camões/JDACT