segunda-feira, 27 de maio de 2013

A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa. Luciano Rossi. «… se retoma o motivo da monja grávida, contaminando-se com um outro, difusamente exposto na cantiga 94ª: “o da fugitiva cujo lugar fora ocupado pela Virgem”. Os elementos da narração que haviam sido apenas aflorados na sétima cantiga são aqui habilmente desenvolvidos»

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Literatura de Corte: Cantigas de Santa Maria e Cantigas de Maldizer e D’escarno
«(…) Abertas às solicitações mais diversas, as Cantigas de Santa Maria reelaboram originalmente motivos narrativos de várias origens: remontam naturalmente à tradição popular, às narrativas marianas em latim medieval, aos Miracles de Nostre Dame de Gautier de Coinci, mas reproduzem também, muitas vezes, episódios da vida vivida, temas clássicos, contos devotos e também profanos. A colectânea apresenta-se-nos como uma obra ainda em elaboração que se vai enriquecendo com novos textos até ao fim da vida do rei Afonso. O monarca aparece-nos como um hábil narrador (da maior utilidade para a análise dos textos é a magistral edição dirigida por Walter Mettmann, um verdadeiro monumento da filologia românica ibérica). Reelabora a matéria de forma original, reservando-se muitas vezes para regressar aos temas preferidos e desenvolver-lhes os aspectos inéditos, ao mesmo tempo que também utiliza sabiamente no conto os recursos do acompanhamento musical.
Pense-se, por exemplo, no tema da abadessa prenhe, que veremos desenvolvido, com recursos literários bem diferentes, também pelo autor do Orto do Esposo: a ela é dedicada a sétima das cantigas em honra da Virgem: Esta é como Santa Maria livrou a abadessa prenne, que adormecera ant’o seu altar chorando. Era um conto muitíssimo difundido na Idade Média, que figurava nas colecções em latim medieval, onde o vai buscar o compilador cisterciense do Orto, nos Miracles de Nostre Dame, nos Conti morali de um anónimo de Sena, etc.
Enquanto as outras redacções, com maior ou menor ironia, parecem todas adaptar-se, no entrecho e nos pormenores narrativos, ao modelo latino medieval, Afonso não parece preocupar-se com os seus antecedentes, ainda que seja evidente o conhecimento, pelo menos, da versão de Gautier de Coinci, cortando  da história a secção que lhe interessa e reservando-se para desenvolver num outro lugar (cfr. as cantigas 55 e 94, alguns dos motivos que aqui pusera de parte. Assume, portanto, grande relevo a ingenuidade estupefacta da abadessa que adormece chorando diante do altar, enquanto se exacerba a contraposição entre o erro da mulher e a alegria do milagre que a liberta, com o qual de resto o conto se conclui, sem o apêndice da confissão pública, como nas fontes, e sem que seja feita qualquer alusão relativa à sorte da criança precocemente dada à luz e enviada para Soissons por exigência da rima, nas outras redacções era, em vez disso, educada por um santo e destinada a tornar-se bispo:

Mas a dona sem tardar
a Madre de Deus rogar
foi; e, come quen sonna,
Santa Maria tirar-
lle fez o fill’e criar-
lo mandou en Sanssonna.

Com poucos traços são analisadas todas as etapas essenciais da narração, com aquela rima em -onna que aparece em posição estratégica para pôr em comum lugares distantes. O pecado, devido às más artes do diabo:

Mas o demo enartar-
a foi, por que emprennar-
s’ouve dun de Bolonna,

A artificiosa hilaridade com que a abadessa se apresenta ao bispo, interpelado pelas monjas hostis:

E fórona acusar
ao Bispo do logar,
e el ben de Colonna
chegou y; e pois chamar-
a fez vo sen vagar,
leda e mui risonna…

A reabilitação final:

e pois lle vyu o so,
começou Deus a loar
e as donas a brasmar,
que eran d’ordin d’Onna…

Mas, prosseguindo na leitura da colectânea, eis que na 55.ª cantiga de Afonso se retoma o motivo da monja grávida, contaminando-se com um outro, difusamente exposto na cantiga 94): o da fugitiva cujo lugar fora ocupado pela Virgem. Os elementos da narração que haviam sido apenas aflorados na sétima cantiga são aqui habilmente desenvolvidos. A figura do sedutor, ímpio e enfatuado, é um padre verdadeiro, un preste de corõa, que não tem escrúpulos em abandonar a mulher quando se apercebe que ela está grávida, depois de a ter longamente mantido consigo em Lisboa, assume contornos precisos:

… enton o crerig’astroso / leixou-a desanparada,
e ela tornou-sse logo / vergonnosa e coitada,
andando sempre de noite / come sse fosse ladrõa.

Paira sobre a história uma indefinível atmosfera de prodígio, quando, no seu regresso ao convento, a monja é acolhida sem surpresa, sem que ninguém mostre ter notado a sua longa ausência. O filho que tem no seio é-lhe levado por um anjo e a mãe não consegue voltar a vê-lo senão quando já velha, numa cena de alegria, como todas em que se manifesta a intervenção da Virgem, plena de ardor místico». In Luciano Rossi, A Literatura Novelística na Idade Média Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa, CV Camões, Instituto Camões, volume 38, série Literatura, 1979.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT