O sangue, o vento, a guerra e outras circunstâncias
«Agora que a necessidade não me desperta a horas tão urgentes, às vezes
demasiado matinais, sempre temidas, costumo ficar, já acordado, na cama: um bom
bocado, de manhã, não por preguiça, que nunca fui preguiçoso, mas sim
despistado, o que não é a mesma coisa, antes pelo gozo que me causam a posição
e o calor, a posição de um feto avançado e o calorzinho a que se chama
pré-natal, ou coisa parecida, o ponto justo do que é preciso para o equilíbrio
térmico da alma, ou pelo menos do que preciso eu, que é de quem me ocupo, o sujeito
que goza. Em tais situações, acontece-me que de alguma parte ignorada do meu
íntimo, provavelmente aquela a que devo tudo, me chega como uma rebentação a
vontade de obnubilar a consciência, embora talvez fosse melhor dizer de a
mudar, de clara e superficial, em obscura e profunda, e de ver se nessa posição
o meu corpo cria raízes que de novo, embora já arde, o religuem ao corpo de
minha mãe, e, através dele, a tudo quanto do passado paira no meu sangue, a
tudo o que o sangue arrasta na sua torrente e não lhe pertence senão por
herança: bacia fluvial inimaginável, lá para trás, para as origens, densa rede
de mananciais inexplorados, sei lá de que veios, de que caudais virá. Não é
difícil recordar, pela história, o passado, mas ignoramos os métodos de o
recuperar pela biologia. A que o sangue
canta é canção sem palavras, e dos meros ritmos pouco se pode inferir,
salvo a música do cosmos. Quando escrevi, há já alguns anos, a história de Juan, pus o meu personagem perante os seus
antepassados, de modo que lhe fosse possível perseguir a transmissão de uns aos
outros, e as suas alterações ao longo da viagem, do nariz daquele Tenório
em que os outros tinham origem: a estirpe, nascida chata, terminou em aquilina.
Mas eu, que pelo caminho do sangue não consegui sair de mim próprio,
nem sequer recordar essa felicidade que, segundo dizem, precede algum tempo o
nascimento, também não o alcancei pelo caminho da história, pois as notícias
dos meus maiores, que não foram ilustres, pouco remontam além de duas gerações,
e são mesmo assim incompletas e insubstanciais, já que alguns se empenharam em
não deixar de si mais testemunho que o seu nome. Ou nem sequer lhes ocorreu fazê-lo,
visto que eu era imprevisível, e, comigo, as minhas fantasias. Quando de manhã,
ao fazer a barba, me ponho diante do
espelho, vejo nele, umas vezes minha mãe, outras meu pai; vejo-os claramente no
meu próprio rosto, que por igual lhes pertence, e saúdo-os e peço-lhes que
continuem a ser pacientes e me esperem um pouco mais, não demasiado, o razoável.
Essa cara cambiante, este corpo algo mais do que matéria, forma também, provêm
de ambos, e bem poderia separar o que lhes pertence e pôr-lhe verbetes. Mas
como eles, por sua vez, o receberam de seus pais, e assim desde trás, de pais e
mães sem conta, para mim sem rosto, como
sei eu de onde vem o que sou, ou, pelo menos, o que tenho? Os meus lábios e
a minha testa, os meus longos pés ou esta maneira de andar amarrecada. Do fundo
dos séculos e dos sangues, é, claro, mas sem nome, ou, pelo menos, sem verbete.
Não me encontro no mundo, nunca me encontrei, tão solitário como aquele
que vagamente sabe da sua origem, ou que a ignora, mas tão-pouco como esse
outro que, tal como na Bíblia, recita a ladainha dos seus antepassados, sem
faltar um, ainda que apenas os da linha paterna, pois com a da mãe, grave erro! É costume ser-se mais
indulgente. Se a verdade está na biologia, não me serve. Mas a história não me
autoriza a deslocar-me para trás, não me deixa dar saltos nem perder-me em
conjecturas. Ainda que a posição fetal e o calor pré-natal sejam recuperáveis,
não podemos sair de nós próprios. Ainda que os documentos estejam aí para quem
quiser investigá-los, do que eu preciso não é de nomes de registos
paroquiais, mas sim de biografias, e, essas, ignoro-as». In Gonzalo
Torrente Ballester, O Sangue, O Vento, A Guerra, e outras Histórias, Contos,
Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0979-0.
Cortesia de Caminho/JDACT