quarta-feira, 15 de maio de 2013

Crónica. Saudade da Literatura. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «Resta aguardar para ver quem vai pagar a factura, se os vencimentos dos deputados se o seu, leitor…. O país, e os vencimentos do país que ainda tem vencimentos, presos da dúvida, ficam à espera dos próximos episódios»

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História trágico-parlamentar
«Há-de estar lembrado o leitor de jornais da última luso-contribuição para o Guiness parlamentar: o tempo recorde em que os deputados da República aumentaram os próprios vencimentos para níveis por assim dizer europeus! Os deputados deputaram, na circunstância, a toda a pressa e a mais que toda a eficiência: pouco palavreado e muita acção, conforme a famosa palavra de ordem do não menos famoso professor de Coimbra, Carlos Mota Pinto. A bem da Nação, o facto foi aqui cantado na melhor prosa que na altura se pôde. O país ficou, enfim, com deputados lustrosos e prestigiados (passado pouco tempo prestigiaram-se também a si próprios os outros políticos). Alguém tinha que entrar à frente na CEE e foram entrando os políticos, enquanto não chega a vez dos desprestigiados operários, professores, desempregados e assalariados sem salário, a quem, como se sabe, não basta porem-se de pé todos ao mesmo tempo para chegarem ao ramo europeu da árvore das patacas do Orçamento.
A operação parlamentar foi cansativa. E a discussão do Orçamento do Estado apanhou os deputados da Maioria ainda ocupados a conferir as folhas de vencimentos. Foi assim que, tendo alguém, parece, carregado por engano no botão da disciplina de voto (até podem ter sido as mulheres da limpeza das direcções do PS e do PSD), os deputados da Maioria, levantando-se instintiva mente mal ouviram a campainha, aprovaram outro dia, sem saber o que estavam a votar, uma proposta da Oposição...
O Governo entendera orçamentalmente que devia estimular os portugueses sem casa a comprar casas aos construtores civis com casas para vender. E decidiu passar sem a sisa dos que comprassem casas até cinco mil contos. Os deputados do CDS, todavia, sensíveis como são à igualdade dos cidadãos perante o Orçamento (ou há moralidade...), acharam que estavam a ser injustamente discriminados pelo Governo os portugueses que comprassem moradias com piscina e garrafeira, que, como é sabido, custem mais que cinco mil contos. Fizeram as contas e propuseram que se dispensassem também da sisa os compradores de casas até 15 mil contos. No caso dos deputados, por exemplo, sempre havia de ser injusto pagar-lhes salários europeus, por um lado, e não lhes facilitar depois a compra de casas europeias!
A Maioria que não: que também o Governo precisava de aumentar proventos e que, em ano de eleições, não se podia ir buscar tudo ao Imposto Profissional. Insistiu o CDS que sim, e a Maioria cedeu até aos 10 mil contos! Teimou o CDS que era pouco, que os preços das piscinas e das garrafeiras estão pela hora da morte. E estava-se nisto quando, para desempatar, a Mesa decidiu ir a votos. Quem dá mais?, perguntou a Mesa. Era o chamado momento da verdade. Só que, como se costuma dizer, a catástrofe espreitava. Naquele momento, no gabinete das direcções partidárias da Maioria, alguém terá inocentemente reparado no luzidio botão da disciplina de voto.
E, convencido de que chamava o contínuo para mandar comprar tabaco, premiu e campainha, que retiniu vibrantemente na Assembleia e na consciência partidária dos deputados do PS, do CDS e do PSD. Levantou-se instintiva e disciplinadamente a deputação. E a proposta do CDS (as crónicas parlamentares não contam se os deputados do CDS se sentaram instintivamente quando viram a Maioria de pé, e votaram por engano contra a sua proposta...) foi aprovada pela Maioria!
Quando deram conta da tragédia os deputados quiseram dar o dito por não dito e o votado por não votado. O CDS e Mesa, contudo não deixaram. E assim os portugueses que tenham em vista moradias de 15 mil contos podem ir pedindo o papelinho das Finanças a dispensá-los de sisa e marcando a escritura no notário, enquanto no Parlamento a deputação da Maioria se esmifra agora em imaginar soluções para trocar as voltas à votação e o secretário de Estado A… D… para tapar outro buraco de meia dúzia de milhões, como se lhe não bastassem já os buracos e as correntes de ar com que o seu rico Orçamento chegou à AR depois da travessia do Governo.
Estando posta de parte a hipótese de os deputados da Maioria ficarem de castigo virados para as paredes do Parlamento, ou passarem a usar o 90 nos primeiros tempos do mandato, sabido que o seguro obrigatório não cobre a forma como se conduzem nas votações, resta aguardar para ver quem vai pagar a factura, se os vencimentos dos deputados se o seu, leitor, e o do cronista. O país, e os vencimentos do país que ainda tem vencimentos, presos da dúvida, ficam à espera dos próximos episódios.
In JN,23/2/1985.

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio & Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT