«(…) Novo Mosteiro chamam os primeiros
documentos cistercienses à fundação que se implanta no coração da Borgonha, a
alguns quilómetros de Dijon; novo
porque se intentava a novidade de vida, pelo regresso à pureza da Regra, mediante uma pobreza fecunda, mãe soberana e inspiradora
das virtudes monásticas. Cistelium
evoca, ao tempo, não propriamente um lugar dos arredores de um antigo acampamento
romano, cis-tertium, o terceiro marco, mas a rudeza do
ambiente em que não havia senão mato, juncos, charcos de água e floresta (a
forma Cistercium / Cistelium / Cistellum, e a correspondente românica Cistel remetia para este significado, mas não é inverosímil que
possa derivar simplesmente de um antigo marco miliário, cis-tertium; Les cisterciens, in
Les Ordres Religieux, Paris, 1979). Sobre essa imagem recai o desafio
da transformação, através de uma intervenção que é modalidade de agir por sua
conta, esperançados certamente na ajuda divina, mas dispostos igualmente a
viver apenas do produto do próprio trabalho, sem recurso a outros expedientes,
de favor e de domínio ou de dependência.
As opções são radicais e têm consequências que a nova comunidade monástica
quer levar a bom termo. O local, por maninho que fosse, não era baldio e o
senhor feudal conhecia bem os limites das suas propriedades. Amigo de Roberto,
Eudes I, duque de Borgonha, que em tempos anteriores se mostrara magnânimo para
com a comunidade de Molesme, embora noutras ocasiões se tivesse mostrado
ávido de alargar os seus domínios e de ganhar riquezas fáceis, (conhecido é o
episódio passado com Anselmo, arcebispo de Cantuária, quando atravessa o
seu território, certo dia do ano de 1097;
convencido de que encontra riqueza na sua bagagem, o duque ataca-o com as suas
tropas, mas tem de se render à evidência de uma pobreza que o converte em
protector do santo arcebispo que peregrina até Roma), agora, também a pedido do
arcebispo de Lião, convence um seu vassalo, o visconde Renard de Beaune,
a ceder aos monges o terreno necessário, em três actos que alargavam a
concessão inicial, em troca de benefícios que o próprio duque se compromete a honrar,
um rendimento anual de vinte soldos, escudos
em ouro, e uma autorização para o visconde e seus filhos cultivarem vinha nos
seus terrenos. Já então fica claro que os monges não pretendem aceitar nada que
os coloque em dependência de outros ou lhes retire a liberdade interior de tudo
decidir segundo o que considerarem melhor para a reforma que se propõem. Ela é
um misto de eremitismo e de cenobitismo, pois, se é afastamento do mundo, é
também comunitarismo vivido no recolhimento mais completo sob a direcção de um
abade, que, como manda a Regra,
assume a plenitude de funções no cuidar espiritual e materialmente dos seus
monges.
Para preservarem a sua inteira disponibilidade de serviço divino e de separação
com o mundo, vão os monges reclamando actos que incluem formas específicas de
administração e de ocupação de locais: a forma de alódio (território não
sujeito a direitos alheios) é o núcleo da primeira concessão que perfaz um
perímetro destinado aos edifícios fundamentais e às explorações de
subsistência; a segunda concessão envolve uma igreja, mas relativamente a ela o
senhor tem de declarar que se trata de um local isento, porque pertence só a
Deus, de tal forma que os monges tomam conta dela como se fossem os primeiros ocupantes; pela terceira concessão, o
usufruto de uma parte do terreno fica adstrito a dois servidores e uma serva,
mas estes ficam sujeitos ao visconde e não aos monges.
Mais do que esta liberdade frente a intervenções estranhas e a independência
tanto de monges como de seus colaboradores, que terá consequências de monta nas
próprias relações de trabalho, ressalta o significado jurídico da inclusão do
abade de Molesme no primitivo grupo que partia para Cister. Se Roberto tivesse ficado em Molesme, a fundação teria ficado submetida à
abadia-mãe, fosse como priorado, fosse a modo de Aulps. A fundação de Molesrne, em 1097, não gozava. de plena autonomia, pois dependia em vários aspectos
daquela, que mantinha o direito de intervenção com o que isso implicava na
escolha do abade de entre os monges da abadia-mãe e a própria desclassificação
para o estatuto de cela em caso de relaxamento monástico. Isso teria sido uma
solução falha; se a iniciativa queria triunfar, era necessário fundar uma
abadia completamente sui iuris.
Tinha sido mérito do legado pontifício, a quem os monges tinham
recorrido, decidir que o abade partisse com os interessados». In
Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri,
Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.
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