sábado, 4 de maio de 2013

Narração da Inquisição de Goa. Charles Dellon. «A pertinácia, que eu mostrara, em não querer trazer rosários ao pescoço, não contribuiu menos para me suporem herege, como a recusação que fazia em beijar as imagens; mas o que mais que tudo motivou a minha prisão»

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«Eu contava então apenas os meus 24 anos de idade com pouca diferença, e não tinha a prudência precisa a uma pessoa que vive entre estrangeiros, a cujos usos convém conformar-se qualquer, quanto ser possa; e como além disto não estava habituado a tais cerimónias, recusei muitas vezes tomar e beijar estas caixas; donde se inferiu, por mui temerária consequência, que eu desprezava as imagens, e por conseguinte era herege. Achava-me eu em casa de um fidalgo português a tempo em que iam sangrar seu filho enfermo; vi que este mancebo tinha no leito uma imagem da Santa Virgem, feita de marfim.
E quanto ele a venerava, beijava, e lhe dirigia suas orações! Este modo de honrar as imagens é muito comum entre os portugueses, e me fazia alguma pena, porque ia verdade os hereges, interpretando-o mal, acham nisto tanto embaraço como em outra coisa qualquer de voltarem ao grémio da Igreja. Adverti pois a este jovem que se ele se não precavesse, aspergir-se-ia o sangue sobre a imagem; mas respondendo-me ele que não podia resolver-se a largá-la, representei-lhe que isto obstaria à operação; ele então me exprobrou logo, que os franceses eram hereges, e não adoravam as imagens. Respondi que eu cria que elas se deviam honrar, mas que a adoração, se deste termo nos podíamos servir, só devia ser feita às imagens de nosso senhor Jesus Cristo, e ainda nesse caso era mister que tal adoração se referisse a Jesus Cristo, representado nas ditas imagens; e a esse intento citei o Concílio de Trento.
Quase neste comenos aconteceu que um vizinho meu, vindo a minha casa e deparando à cabeceira do meu leito com um crucifixo, disse-me: - Lembre-se o senhor; e tenha cuidado de cobrir esta imagem; não seja caso que receba alguma mulher em casa, e tê-la aí. E eu disse-lhe: - Como credes vós pois, senhor, que assim nos podemos nós encobrir aos olhos da divindade? Sois acaso do sentimento das mulheres perdidas, que existem entre vós, que quando fecham nas suas gavetas os rosários e relíquias se persuadem que podem entregar-se, sem crime, a toda a sorte de excessos? Pois deixai-vos disso, meu caro senhor, continuei eu, tende mais altos sentimentos da divindade e não penseis que um bocado de pano possa esconder os nossos pecados aos olhos de Deus, que mui claramente vê os mais recônditos esconderijos dos nossos corações.
E demais o que importa este crucifixo mais que um pedaço de marfim? - Aqui terminou o nosso colóquio, e havendo-se retirado o meu vizinho, cumpriu exactamente o seu pretendido dever, indo denunciar-me ao comissário da Inquisição (maldita). Convém aqui advertir de passagem que os que vivem em países sujeitos à jurisdição do Santo Ofício (maldito) são obrigados, sob pena de excomunhão maior, reservada ao inquisidor-geral, a declarar no prazo de 30 dias tudo o que viram fazer, ou ouviram dizer, em relação aos casos de que julga este tribunal, e porque muitos poderiam não temer esta pena ou duvidar que efectivamente tivessem incorrido nela, quiseram os inquisidores, para obrigar os povos à pontual obediência desta determinação, que todos aqueles que fossem omissos em fazer a denúncia no prazo marcado nas ordenanças se reputassem culpados e fossem depois punidos, como se eles mesmos houvessem sido os réus dos crimes, que não revelaram; e dai vem que em matéria de inquisição os amigos traem os amigos; os pais, os filhos; e estes filhos, por um zelo indiscreto ainda se esquecem do respeito que Deus e a natureza os obrigam a ter para com aqueles que lhes deram o ser.
A pertinácia, que eu mostrara, em não querer trazer rosários ao pescoço, não contribuiu menos para me suporem herege, como a recusação que fazia em beijar as imagens; mas o que mais que tudo motivou a minha prisão e condenação foi o caso que passo a narrar. Achando-me numa assembleia, onde se veio a falar da justiça dos homens, disse eu que ela não me merecia este nome, mas antes o de injustiça; porque os homens, não julgando senão por aparências, que frequentes vezes enganam, eram sujeitos a mui poucas vezes fazerem juízos rectos, e sendo só Deus o conhecedor das coisas tais como elas em si são, também não havia outro, afora ele, que se pudesse chamar verdadeiramente justo». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.

A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de E. Antígona/JDACT