sábado, 15 de junho de 2013

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «A revolução burguesa triunfante não estabeleceu nem podia estabelecer, muito menos nesta época, o extermínio da nobreza feudal como classe. Estabeleceu uma nova síntese social favorável ao desenvolvimento da burguesia vencedora mas em que se integram os nobres…»

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Divergência e Diálogo
«(…) Em 1964, em Raízes da Expansão Portuguesa, demonstrámos, seguindo David Lopes, António Sérgio e outros, que foram os chefes militares e burgueses de Aljubarrota, a cidade de Lisboa, o Porto e as vilas marítimas que tiveram o papel decisivo na tomada de Ceuta. E Ceuta, e não a episódica expedição-anúncio às Canárias, marca a viragem de rumo porquanto assinala o abrir de um caminho que não mais se fechou até Abril de 1974. O Sujeito social e histórico de Aljubarrota é o sujeito de Ceuta e da colonização das ilhas da Madeira e dos Açores. Com hesitações e episódicas mudanças de rumo, Tânger, Alcácer Quibir, conquista de Ceilão, multiplicação excessiva das fortalezas no Oriente, triunfou ao longo dos séculos a linha burguesa do comércio, dos entrepostos comerciais, da guerra para dominar o comércio, da guerra para abrir e fechar os mares, do negócio humano da escravatura, da colonização agrícola de novo tipo de que a civilização do engenho constitui o momento mais original, isto apesar de os bens pensantes actuais pensarem e repensarem que não houve burguesia em Portugal.
As novas forças sociais que aparecem no leme do Estado durante o governo de João I, para não levarmos a análise mais longe, protestavam antes contra o rei Fernando I por se fazer regatão mas agora João I é um rei regatão, mercador, com os mercadores a gerirem-lhe as finanças, as naus e barcas, a venderem-lhe centenas de milhares de alqueires de trigo em Génova, a investirem o dinheiro régio na Comuna de Florença. E não foi certamente do fundo dominial do rei, fundo desfalcado pelas doações feitas aos pequenos nobres que o ajudaram a ganhar o trono, que João I conseguiu, sem os graves défices dos seus sucessores, aguentar as despesas correntes da corte e de uma terrível e longa guerra civil e pela independência nacional e suportar ainda volumosas despesas extraordinárias com os casamentos diplomáticos dos seus filhos e as expedições militares às Canárias.
A burguesia agora não protestava contra o rei regatão-mercador, contra os nobres armadores, porque agora era poder e poder determinante e era ela que conduzia a política económica através dos seus vedores da Fazenda.

À burguesia interessava o domínio das portas do Mediterrâneo, as boas presas do comércio cristão, marroquino e do Levante árabe, a dilatação das zonas das pescarias, o aniquilamento dos ninhos de corsários mouros e, mais, a penetração e o saque das rotas do ouro, das especiarias, das sedas e dos escravos. Mas acima de tudo, e é isto que se não tem posto em equação, interessava-lhe o reconhecimento por parte dos senhorios da sua existência como classe ou seja o respeito pelos seus bens, pelos seus privilégios e pela sua expansão económica, social, militar e política […] Que importava à burguesia o ouro se, por portas e travessas, lhe escorresse das mãos para o paço dos senhores?
  • A melhor forma de defender os privilégios não era manter uma posição-chave no aparelho do Estado? 
E noutra passagem:
  • Em resumo, a luta entre a burguesia, assinaladamente a sua cabeça agrícola-comercial, e a nobreza feudal pelo domínio do Estado, com a força impulsionadora dominante e decisiva de uma burguesia estrategicamente na ofensiva, luta entrecortada por alianças e traições, é o verdadeiro motor da história do século XV pelo menos e, no caso, da história da expansão. E é à luz da estratégia global dos seus interesses de grupo que vemos a par e passo quer a alta burguesia quer a nobreza mudarem de opinião acerca dos problemas mais instantes e, nomeadamente, dos rumos da expansão.
Verificamos que a aristocracia senhorial saiu da crise reforçada, escreve Armando Castro. Politicamente, a corrente liderada pela grande nobreza senhorial e que pretendia conservar no trono a rainha legítima Beatriz e o seu sensorte, rei de Castela foi derrotada. Já em 1396, o seu descrédito político era tal que o candidato da grande nobreza derrotada é agora Dinis, o segundo filho de Inês de Castro e de Pedro o Cru. Mas trata-se mais de uma manobra de diversão do que de uma candidatura com quaisquer possibilidades de êxito político. Os rapazes das bestas caracterizaram o episódio com a apóstrofe sarcástica: Monarca Dinis, el-rei, onde is?
Militarmente, essa mesma corrente da grande nobreza senhorial foi derrotada nos Atoleiros, em Lisboa, em Trancoso, em Aljubarrota, em Valverde e em outros episódios mas que não vem para o caso recordar. O conde de Barcelos, o conde de Ourém, o conde de Viana, o prior da Ordem do Hospital, o almirante Pessanha e tantos outros, em lugar de enforcarem os conjurados por sua mão, perderam a cabeça, os corpos e os bens nos ensanguentados campos de batalha. A revolução burguesa triunfante não estabeleceu nem podia estabelecer, muito menos nesta época, o extermínio da nobreza feudal como classe. Estabeleceu uma nova síntese social favorável ao desenvolvimento da burguesia vencedora mas em que se integram os nobres que lutaram pelo novo rei ou vieram a aceitar o novo curso das coisas. Este novo curso foi marcado decisivamente pela burguesia das cidades e vilas, particularmente das cidades e vilas marítimas e pelos burgueses-cavaleiros, oriundos dessa burguesia e a ela ligados pela vida e também pelos bens. A nobreza, como provamos no texto de 1965, seguindo os documentos publicados por Gama Barros e não Fernão Lopes, estava na oposição durante o governo do rei João I».

In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Cortesia da Caminho/JDACT