Polícia
«(…) Sou uma criatura sã, digo. Sou um bêbado. Vou dormir vestido
vermelho, vou morrer. Mas não está ninguém a meu lado. A máquina bate as nossas
estúpidas palavras. O inspector estende as mãos exangues e parece cada vez mais
inteligente. – Claro, diz. - Nunca pretendi chamar-lhe comunista. Imagino
apenas que, por ingenuidade, por exactamente não ser comunista, o senhor tenha
colaborado com eles. Por ingenuidade. Por nada saber. Vê onde quero chegar? Só
desejamos que diga os nomes. Os nomes? Que nomes? Três horas à volta desta
porcaria. Depois mandam-me embora. A cela fica no segundo piso, a meio de um
corredor frio, alumiado por algumas lâmpadas amareladas. De um lado e outro
existem celas, quase todas vazias agora, pois fizeram há pouco tempo
transferência de presos para outras cadeias. São celas pequenas e escuras, de
cimento. Encostada à parede, a tarimba com um cobertor. Ao canto, o pote onde
se urina e defeca. O silêncio é completo através do canal do corredor. Nada
disto me faz grande mal. Talvez o silêncio me impressione, mas depois deixo de
senti-lo. Começo a pensar e já não tenho consciência desse frio silêncio
amarelo em que tudo se consome. Vejo-me no espelho a brincar com um cálice vazio
na ponta dos dedos. Mas o olhar apaga-se de súbito, e as pálpebras batem. -
Tenho medo, digo.
Uma cara olha-me atonitamente. É agora o vestido vermelho com uma
idiota flor branca por cima: a cabeça.
- O quê? - Não, não é de ser preso outra vez que tenho medo. Peço-lhe que
aceite mais um copo de cerveja, minha senhora. Gostaria de sentir-me solidário com
alguém. - Ouvem?! - exclama ela para as outras. - Este gajo tem uma bêbeda
porreira. Peço-lhe que aceite mais um copo de cerveja, minha senhora. Pois não,
meu caro senhor. Amanda-me aí uma imperial bem tirada, ó Juca! Vejo dois copos
de cerveja sobre o balcão e agarro num deles. O frio sobe-me pelos dedos. Daqui
a pouco não sentirei as mãos: estarão
adormecidas. Suponho que rio baixinho. Foi isto que me fizeram. Estou
cheio de frio. Durmo. Nunca mais acordarei. – Ouça, digo para ninguém. - Não me
bateram. Foram amáveis durante os interrogatórios. Ele tinha mesmo uma cara honesta.
Às vezes pergunto: quem sabe se não
seria uma pessoa honesta?
Alguém senta-se no banco ao lado e pede qualquer coisa. - Sou um homem
honesto, digo ao meu novo vizinho. - Procuro sê-lo. - O vizinho sorri,
condescendente. Pisca o olho ao empregado, que também sorri. - Agora não sei
bem se isto é honestidade. Mas de qualquer modo eu nunca pertenceria à polícia.
O outro pertencia, e pareceu-me honesto. Que
sentido há nisto? - É que ele não era um homem honesto. - E o vizinho dá
uma gargalhada. - Não? - Julgo
que sonho. - Claro, era um assassino. Um assassino honesto. E de novo a música
louca enche tudo. Bebo depressa. Sinto-me no fundo de uma turbulenta e
exasperada corrupção. Calo-me para lembrar melhor. Na terceira noite de cadeia
estive a pensar que não era um revoltado, mas um simples empregado de
escritório pouco imaginativo. Não merecia estar preso. Talvez fosse bom merecê-lo.
Um momento mais, e estaria perto da fraternidade. Mas eu era um pequeno homem
honesto. Da espécie de honestidade que não ligava com a do inspector só talvez
por ser inerme. Uma vil honestidade passiva. Anuidora, silenciosa. Que não
desejava incómodos. Apenas por não ter um temperamento activo é que eu nunca seria da polícia? Bem sei, é
absurdo. Estou doente. Não devo pensar nisto. - Bebemos mais uma cerveja?
Não está ninguém para beber. Continuo a beber só. E rio baixinho, um
pequeno riso mortificado e cruel por trás do copo enevoado da cerveja. Por trás
ainda da minha vida de burguês destruída pela peste. Sempre dormi bem. Hoje
imagino que, durante todos os tranquilos sonos da minha vida, se preparavam e
realizavam os crimes. Dormi como um justo. Não
é assim que se diz? Como se fosse um justo. Mas um estremecimento
qualquer entrara no meu sono, um rato entrara no sono. Conseguem imaginar o que se passou? Um empregado de
escritório está metido numa cela por suspeitas políticas. É tudo infundado, e
ele acredita que o caso se há-de esclarecer. Por isso dorme tranquilamente como
durante a liberdade. Está com um pouco de vergonha de si mesmo, porque pensou
durante cinco minutos que nem toda a gente tem o direito de estar presa.
Dorme num poço situado sob as mais belas estrelas (imagem esta de agora,
quero dizer: poesia irresponsável de bêbado). Serenidade por toda a parte.
Serenidade cósmica, prisional, pessoal.
Fora o rato que trabalhava no escuro da serenidade.
E então acordo. Não acordo como se o rato estivesse a roer. Acordo por
explosão. É um grito. Depois,
vários ruídos. Um rumor espalhado e, no centro, esse grito, alto, material como
ume agulha de gelo. Uma coisa impossivelmente terrífica Um grito humano. E só distingo
a penumbra amarela que vem do corredor. O silêncio contamina tudo, o frio cerra-me.
E a luz amarela estende-se pelo chão e atinge o pote de urina, que fede. Então
sinto uma dor na barriga e corro pare o pote». In Herberto Helder, Os Passos em
Volta, Assírio & Alvim, 2009, ISBN 978-972-37-0119-7.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT