sexta-feira, 14 de junho de 2013

Noite de 15 de Julho de 1900. Conferência Pública. Atheneu Commercial de Lisboa. Alexandre Herculano. Diogo Rosa Machado. «Theophilo Braga manifesta na ‘Historia do romantismo’ quando nega a Herculano a possibilidade de comprehender a vida politica do povo portuguez pelo facto de ser um christão fervoroso e poético. Mas contradiz-se quando, para deprimir Herculano, faz os maiores elogios a Agostinho Thierry, que não era menos christão do que o príncipe dos historiadores…»

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«(…) Creio que, em quanto a humanidade existir, ha de haver sempre discordância em matéria philosophica. A historia da philosopbia, diz Herculano, é a historia de um edificio começado ha milhares d'annos em que um século revolve os fundamentos que outro lançou, para lançar os seus, os quaes egualmente são revolvidos pelo século seguinte, cujos trabalhos condemnará o que vier após elle. A dúvida, a que o espirito de Herculano era naturalmente propenso, como se revela em muitos dos seus escriptos, impedia-o de se deixar dominar completamente pelas crenças religiosas, que nunca exerceram a minima influencia nas suas investigações históricas. Esta minha opinião é completamente opposta á que Theophilo Braga manifesta na Historia do romantismo quando nega a Herculano a possibilidade de comprehender a vida politica do povo portuguez pelo facto de ser um christão fervoroso e poético. Mas o distincto escriptor contradiz-se na mesma página quando, para deprimir Herculano, faz os maiores elogios a Agostinho Thierry, que não era menos christão do que o príncipe dos historiadores portugueses.
Nenhum escriptor do romanticismo foi apreciado tão injustamente pelos seus adversários como Alexandre Herculano, o que para mim é mais uma prova do seu immenso valor. Herculano, que foi accusado de impio pelos partidários da reacção ultramontana e do jesuitismo, tem sido criticado injustamente por alguns escriptores que, declarando-se sectários do positivismo, estão muito longe de seguir as pisadas de Taine e de Littré, dois positivistas eminentes que, pelo seu caracter austero, espirito philosophico e estylo elegante, primoroso, correcto e límpido, se tornaram dignos da veneração não só da França mas de todo o mundo. Venero todos os grandes homens, seja qual for a sua escola, porque todos têm contribuído poderosamente para o progresso; o que detesto é a injustiça, a maledicência e o fanatismo.
O critico, para ser eminente, deve pôr a sua consciência acima de todos os preconceitos, de todo o espirito do partido. O amor da verdade é a principal qualidade do historiador. Foi esta qualidade, associada a muitas outras, que fez com que Herculano fosse um dos maiores historiadores do mundo. Eu não quero dizer que elle não se enganasse, porque isso seria contrario á natureza humana; não ha ninguém infallivel, a não ser o padre santo para os partidários do neo-catholicismo ou do catholicismo influenciado pela Companhia de Jesus. O que é certo é que Herculano examinava com a mais profunda attenção tudo quanto escrevia, empregava todos os meios de não falsear a historia, tudo sacrificava ao amor da verdade, fazia fallar os factos, não enchia a historia de generalizações falsas, intempestivas e absurdas; tudo quanto dizia firmava-se em documentos que elle criticava com a maior severidade e de cuja authenticidade estava profundamente convicto ; não fazia syntheses que não se estribassem na mais profunda e rigorosa analyse. O mais analisado analysta histórico que Portugal tem produzido teve sempre receio de cair nessa laboração subjectiva, falsa e imaginosa, que caracteriza muitos espíritos do século dezanove.
Quantas obras históricas se não tem escripto, que, em vez da verdadeira philosophia da historia, nos apresentam a philosophia dos seus auctores! Os trabalhos históricos de Herculano foram incomparavelmente mais syntheticos do que tudo quanto no seu género se havia escripto anteriormente em Portugal; mas, se a generalização philosophica não existe nelles mais copiosamente é porque ainda se não tinham realizado com a amplitude indispensável as investigações eruditas sem as quaes toda a philosophia da historia seria apenas um edificio sem base; é porque ainda escasseavam os materiaes sufficientes para se poderem fazer em larga escala syntheses profundas, exactas e rigorosas. Quantas syntheses formuladas no século dezanove não serão matéria de riso para o século vigésimo! Os escriptores gongoricos e nebulosos, que têm falsificado a historia com syntheses falsas e temerárias, parecem-se com aquelle fidalgo da Mancha, chamado D. Quichote, que em cada moinho de vento via um gigante, em cada rebanho um grande exercito; no seu furor de generalizar, os modernos gongoristas em cada facto vêem uma lei.
Diz Theophilo Braga que Herculano não possuía disciplina philosophica; eu estou profundamente convicto do contrario. Foi a disciplina philosophica que deu a Herculano o mais excellente methodo no modo de escrever historia; foi ella que fez com que o nosso grande historiador procedesse sensatamente, começando pelo exame rigoroso dos documentos, passando á anályse exacta e minuciosa dos factos e por fim á generalização philosophica, de que elle usou com a devida sobriedade. Os historiadores que, em vez de ter o máximo rigor na investigação dos acontecimentos, enchem a historia de syntheses phantasticas e plagiadas, é que revelam falta de disciplina philosophica. O methodo seguido por Herculano está em perfeita harmonia com as doutrinas de um dos maiores luminares da philosophia, o grande Bacon, que sustentava que a generalização se devia fazer vagarosamente, considerando as syntheses feitas á pressa como um grande obstáculo ao progresso das sciencias e uma causa poderosa da multiplicação das polemicas.


Só um génio histórico verdadeiramente prodigioso como Herculano, poderia realizar em Portugal o que lá fora se fez com muito mais elementos. O eminente historiador estava num país atrazadissimo em estudos históricos e philosophicos, num país em que uma parte do clero ora roubava documentos ora se recusava energicamente a entregá-los, num país em que os monumentos históricos dispersos pelas collegiadas e mosteiros desappareceriam completamente se Herculano os não tivesse colligido. Pôde alguém, diz Oliveira Martins, avaliar o trabalho do obreiro sem ferramenta nem trabalho são?»

In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.

Cortesia de L. Tavares Cardoso & Irmão/JDACT