«(…) Creio que, em
quanto a humanidade existir, ha de haver sempre discordância em matéria
philosophica. A historia da philosopbia, diz Herculano, é a historia de um edificio começado ha milhares d'annos
em que um século revolve os fundamentos que outro lançou, para lançar os seus,
os quaes egualmente são revolvidos pelo século seguinte, cujos trabalhos
condemnará o que vier após elle. A dúvida, a que o espirito de Herculano era naturalmente propenso,
como se revela em muitos dos seus escriptos, impedia-o de se deixar dominar
completamente pelas crenças religiosas, que nunca exerceram a minima influencia
nas suas investigações históricas. Esta minha opinião é completamente opposta á
que Theophilo Braga manifesta na Historia do romantismo quando nega a
Herculano a possibilidade de comprehender
a vida politica do povo portuguez pelo facto de ser um christão fervoroso e
poético. Mas o distincto escriptor contradiz-se na mesma página quando, para
deprimir Herculano, faz os maiores
elogios a Agostinho Thierry, que não era menos christão do que o
príncipe dos historiadores portugueses.
Nenhum escriptor do
romanticismo foi apreciado tão injustamente pelos seus adversários como Alexandre Herculano, o que para mim é
mais uma prova do seu immenso valor. Herculano,
que foi accusado de impio pelos partidários da reacção ultramontana e do
jesuitismo, tem sido criticado injustamente por alguns escriptores que,
declarando-se sectários do positivismo, estão muito longe de seguir as pisadas
de Taine e de Littré, dois positivistas eminentes que, pelo seu
caracter austero, espirito philosophico e estylo elegante, primoroso, correcto
e límpido, se tornaram dignos da veneração não só da França mas de todo o
mundo. Venero todos os grandes homens, seja qual for a sua escola, porque todos
têm contribuído poderosamente para o progresso; o que detesto é a injustiça, a
maledicência e o fanatismo.
O critico, para ser
eminente, deve pôr a sua consciência acima de todos os preconceitos, de todo o
espirito do partido. O amor da verdade é a principal qualidade do historiador. Foi
esta qualidade, associada a muitas outras, que fez com que Herculano fosse um dos maiores historiadores do mundo. Eu não quero
dizer que elle não se enganasse, porque isso seria contrario á natureza humana;
não ha ninguém infallivel, a não ser o padre santo para os partidários do
neo-catholicismo ou do catholicismo influenciado pela Companhia de Jesus. O que
é certo é que Herculano examinava
com a mais profunda attenção tudo quanto escrevia, empregava todos os meios de
não falsear a historia, tudo sacrificava ao amor da verdade, fazia fallar os
factos, não enchia a historia de generalizações falsas, intempestivas e absurdas;
tudo quanto dizia firmava-se em documentos que elle criticava com a maior
severidade e de cuja authenticidade estava profundamente convicto ; não fazia
syntheses que não se estribassem na mais profunda e rigorosa analyse. O mais
analisado analysta histórico que Portugal tem produzido teve sempre receio de
cair nessa laboração subjectiva, falsa e imaginosa, que caracteriza muitos
espíritos do século dezanove.
Quantas obras históricas se não tem escripto, que, em vez da
verdadeira philosophia da historia, nos apresentam a philosophia dos seus
auctores! Os trabalhos históricos de Herculano foram incomparavelmente mais syntheticos do que tudo
quanto no seu género se havia escripto anteriormente em Portugal; mas, se a
generalização philosophica não existe nelles mais copiosamente é porque ainda
se não tinham realizado com a amplitude indispensável as investigações eruditas
sem as quaes toda a philosophia da historia seria apenas um edificio sem base;
é porque ainda escasseavam os materiaes sufficientes para se poderem fazer em
larga escala syntheses profundas, exactas e rigorosas. Quantas syntheses formuladas no
século dezanove não serão matéria de riso para o século vigésimo! Os escriptores
gongoricos e nebulosos, que têm falsificado a historia com syntheses falsas e
temerárias, parecem-se com aquelle fidalgo da Mancha, chamado D.
Quichote, que em cada moinho de vento via um gigante, em cada rebanho
um grande exercito; no seu furor de generalizar, os modernos gongoristas em
cada facto vêem uma lei.
Diz Theophilo Braga
que Herculano não possuía disciplina
philosophica; eu estou profundamente convicto do contrario. Foi a disciplina
philosophica que deu a Herculano o
mais excellente methodo no modo de escrever historia; foi ella que fez com que
o nosso grande historiador procedesse sensatamente, começando pelo exame
rigoroso dos documentos, passando á anályse exacta e minuciosa dos factos e por
fim á generalização philosophica, de que elle usou com a devida sobriedade. Os
historiadores que, em vez de ter o máximo rigor na investigação dos
acontecimentos, enchem a historia de syntheses phantasticas e plagiadas, é que
revelam falta de disciplina philosophica. O methodo seguido por Herculano está em perfeita harmonia com
as doutrinas de um dos maiores luminares da philosophia, o grande Bacon,
que sustentava que a generalização se devia fazer vagarosamente, considerando as
syntheses feitas á pressa como um grande obstáculo ao progresso das sciencias e
uma causa poderosa da multiplicação das polemicas.
Só um génio histórico verdadeiramente prodigioso como Herculano, poderia realizar em Portugal o que lá fora se fez com muito mais elementos. O eminente historiador estava num país atrazadissimo em estudos históricos e philosophicos, num país em que uma parte do clero ora roubava documentos ora se recusava energicamente a entregá-los, num país em que os monumentos históricos dispersos pelas collegiadas e mosteiros desappareceriam completamente se Herculano os não tivesse colligido. Pôde alguém, diz Oliveira Martins, avaliar o trabalho do obreiro sem ferramenta nem trabalho são?»
In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública
realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900,
Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.
Cortesia de L. Tavares Cardoso & Irmão/JDACT