«(…) Em frente da loja detém-se um automóvel reluzente de chuva, com
friso vermelho e um número por baixo: 227. A viúva de Peláez abre os olhos
e contempla-o através das vidraças por onde a chuva resvala tornando os
contornos indistintos. O condutor apeia-se e começa a desatar um embrulho achatado
que traz sobre o tejadilho. A viúva de Peláez apaga o transístor e
espreguiça-se: o seu regresso à realidade opera-se brusca mas eficazmente.
Os olhos espevitados movem-se com rapidez e não tardam a dar conta do que se
passa à sua volta. Abre-se a porta do carro e assoma um pezinho pequeno,
seguido por umas calças pretas. O pé parece procurar um sítio seco e acaba por
se apoiar na borda enlameada do passeio. Salta uma rapariga vestida com um duffle-coat escuro, com o capuz posto. O
condutor pega no embrulho com muito cuidado e deixa-o encostado à porta
envidraça da loja, A rapariga tira dinheiro e paga. O condutor leva a mão ao
boné, com um sorriso brejeiro. A rapariga aproxima-se da porta e abre-a: entra
uma rajada fria com gotas de chuva que faz estremecer a viúva. O chofer e a rapariga pegam no embrulho e põem-no
dentro da loja. A viúva levantou-se. A rapariga fala com sotaque estrangeiro: -
Boa tarde. Lembra-se de mim, não
lembra? - Claro que me lembro. Como
passou? - Olhe, trago-lhe isto. Indica o embrulho com um trejeito do
rosto gracioso. O chofer, com o boné
na mão, dirige um olhar calibrador às duas mulheres e detém-se na matrona. - Deseja mais alguma coisa? - Não,
muito obrigada. - Obrigado eu. Boa sorte.
Sai e põe o boné na cabeça. As formas de Moncha ocupam por instantes a sua imaginação. A rapariga fecha a porta
e olha em volta. A viúva oferece-lhe uma cadeira. - Sente-se. Deve estar
cansada. - Nem por isso, mas aceito a sua oferta. Obrigada. Deixa-se cair no
assento e traça a perna direita sobre a esquerda. Calça meias vermelhas,
grossas, e, por baixo do casaco, tem uma camisola preta. - O que é que traz aí? - Um quadro, claro. - Grande,
hem? - Sim, é uma coisa antiga. - Já há algum tempo que não aparecia
por cá. - Estive fora, na minha terra. - Em
Inglaterra, não é? - Não. Na Áustria. - Na Áustria, pois claro. Já me
tinha esquecido.
A viúva olha para a rapariga e para o quadro e tenta fazer uma ideia de
onde fica a Áustria. Desenha-se no seu espírito um mapa de contornos imprecisos,
um país de localização incerta, imediatamente substituído pela imagem d'A Austríaca, a princípio não muito
concreta, mas logo perfilada e acompanhada de nomes e apelidos: tem em comum
com a rapariga a cor do cabelo e o tom escuro da indumentária, mas a rapariga é
bastante mais bonita e muito mais nova. A viúva fecha os olhos. À recordação
hesitante de D. Maria Cristina de Habsburgo-Lorena sobrepõe-se a de um jovem
hussardo dançando o Danúbio Azul, a
de uma moça loura raptada pelo oficial, a de um castelo à beira de um lago onde
escondem o seu amor, a de um regimento de cavalaria que parte para a guerra, a
de uma jovem abandonada que pensa noutro tenente... A viúva mexe com indolência
a mão esquerda e detém-na quando o dedo ligeiramente erguido aponta para o
quadro: - Podemos tirar isso?...
- Como quiser. É preciso tirá-lo, claro... - Se me passar essa tesoura... Aí
mesmo, atrás de si. A rapariga volta-se, pega numa tesoura grande e estende-a à
viúva. O brilho das guardas é mortiço, e ao longo das folhas caiu o niquelado:
os ouros falsos de uma cornucópia reflectem-se na curva gasta. A rapariga lança
à viúva um meio sorriso que deixa a descoberto um dente postiço.
- A senhora fá-lo com certeza melhor do que eu. - Pelo menos estou
acostumada. A rapariga levanta-se. A borda das calças enrodilhou-se numa das
meias: cai quando ela estende a perna. - Mas posso ajudá-la. A viúva faz um
esforço quase infinito para abandonar a cadeira de baloiço. A rapariga
aproxima-se do quadro. - Como quiser. É um simples pano cosido... - Vamos lá
ver. A viúva mete a tesoura por um buraquinho e vai rasgando de cima para baixo,
com cuidado, o alinhavo de pespontos largos, feito com cordel. A cada palmo que
rasga detém-se, levanta a cabeça e olha para a rapariga, que a contempla
fixamente. - Continuando assim, pelo lado da moldura, não há perigo de picar a
tela. - Claro.
- Agora do lado de baixo. - Não
creio que seja preciso. Estende o braço, dá um puxão e a serapilheira cai, amarrotada.
- Assim é mais rápido. - Com esta luz... – Espere. Não se importa de acender? Com um gesto de cansaço, alude a
um ponto no espaço da loja. A rapariga sorri, volta-se e apoia o dedo no
primeiro de três interruptores pretos. - Este?
- Não. O de cima.
A rapariga estende um pouco mais o braço. o interruptor faz clic, as lâmpadas flurescentes piscam e
a loja enche-se de uma luz fria que empalidece os rostos e confere ao da viúva inesperados
matizes verdes. - Já está. A viúva contempla o quadro. A seguir aproxima-se e
acaricia a tela afasta-se e semicerra os olhos. Parece de época. - É antigo. -
Isso vê-se logo. - Está um pouco sujo, mas depois de limpo... A viúva não
responde: olha para o quadro, torna a olhar. - Quanto pede por ele? - Quero deixar-lho à consignação, como
das outras vezes. Tudo o que passar de trinta mil, para si. A viúva enruga a
testa, franze os olhos e estende a mão protegida por mitenes. - É muito
dinheiro. – O quadro é bom. - A menina é que sabe, encolhe os ombros. – Mas trinta
mil...
Aproxima-se outra vez, volta o quadro ao contrário, apalpa o avesso da
tela, os seus dedos percorrem a aresta interior da moldura, tocam nos pregos. -
Traz o recibo preparado? -
Como habitualmente. - Dê-mo cá, para o assinar. O que passar de trinta mil!
Mais valia uma percentagem. A rapariga abre a mala, vasculha, tira uma
fotografia de tamanho razoável. - Tome lá. A viúva pega na fotografia:
compara-a com o quadro. - Está certo:
- Recebi à consignação, da menina Veronika Bruns, um quadro de noventa centímetros por cento e oitenta, em bom estado, com moldura dourada de época, deteriorada. O quadro corresponde a esta fotografia em que se passa o recibo. Assinado, Viúva de Peláez, Madrid, sete de Novembro de mil novecentos e sessenta e...
Está bem. Não se importa de me
passar a caneta? Aí, atrás de si, onde estava a tesoura».
In Gonzalo Torrente Ballester, Off-Side, Ediciones Destino, 1969,
Off-side, Editorial Caminho, Lisboa, 2000, ISBN 972-21-1371-2.
Cortesia de Caminho/JDACT