O Espírito de Cavalaria
«(…) Valerá a pena recordar as reflexões de Ortega y Gasset
escritas na segundo década do século XX, em que postulou a superioridade da ética
do guerreiro sobre a ética do homem industrial:
- O estimado Herbert Spence representante tão vulgar como sincero da sua nação e da sua época, opôs ao espírito guerreiro o espírito industrial e afirmou que este último constituía um progresso absoluto em comparação com o primeiro. Tal asserção agradava de sobremaneira aos instintos da burguesia dominante, mas nós deveríamos submetê-la a uma profunda revisão. Com efeito, nada está mais longe da verdade. A ética industrial, ou seja, o conjunto de sentimentos, normas, valores e princípios que regem, inspiram e alimentam a actividade industrial, é moral e vitalmente inferior à ética do guerreiro. A indústria é regida pelo princípio da utilidade, mas os exércitos nascem do entusiasmo. No âmbito da colectividade associam-se através de contratos, isto é, compromissos parciais, externos, (...) enquanto que na colectividade guerreira os homens permanecem integralmente unidos pela honra e pela fidelidade, dois valores sublimes. O espírito industrial é norteado por um previdente afã para evitar o risco, já a figura do guerreiro resulta de um genial apetite pelo perigo. Enfim, aquilo que ambos têm em comum, a disciplina, foi inventado pelo espírito guerreiro e, graças à sua pedagogia, enxertado no homem. Um dos homens mais sábios e isentos da nossa época, o grande sociólogo e economista Max, Weber escreve: A fonte originária do conceito actual de lei foi a disciplina militar romana e o carácter peculiar da sua comunidade guerreira. Seria injusto comparar as formas presentes da vida industrial, que na nossa época alcançaram a sua plenitude, com as organizações militares contemporâneas, que representam uma decadência do espírito guerreiro. Na verdade, o que torna os exércitos de hoje mais antipáticos e menos estimáveis é o facto de serem industriados e organizados pelo espírito industrial. De certa maneira, o militar é o guerreiro deformado pelo industrialismo.
Faça-se aqui um parêntese para, no seguimento desta última ideia
expressa pelo filósofo espanhol, afirmar que, hoje em dia, nos inícios do
século XXI, o modo como se faz a guerra á a antítese do espírito guerreiro
tradicional. Gastam-se rios de
dinheiro para construir armas monstruosas que reflectem a cobardia e a
inconsciência reinante no espírito dos homens de bronze corrompidos que dominam
o planeta. Nos palcos de guerra reina, por vezes, a barbárie mais primária, sem
qualquer freio que possa dar alguma dignidade aos intervenientes, enquanto que aqueles
que realmente mandam estão recolhidos cobardemente nos seus gabinetes, jogando
friamente com a vida dos outros. Não há espírito, nem sentido da honra, nem autenticidade,
tudo foi transformado num negócio,
business as usual. Reflicta-se sobre a degradação de uma nação e de um
exército que, quando um dos seus soldados é capturado e questionado sobre o que
está ali afazer, no palco de guerra, responde: Estou aqui porque me pagam.
Voltando a Ortega y Gasset:
- Medite-se um pouco sobre a quantidade de fervores, de altíssimas virtudes, de genialidade, de vital energia que é preciso acumular para pôr de pé um bom exército. Como negarmo-nos a ver nele uma das criações mais maravilhosas da espiritualidade humana? A força das armas não é força bruta, mas sim força espiritual. Esta é a verdade manifesta, ainda que os interesses de um ou outro propagandista os impeçam de o reconhecer A força das armas não é, certamente, força da razão, mas a razão não circunscreve a espiritualidade. Mais profundas do que esta, fluem no espírito outras potêncías, entre elas as que actuam na operação bélica.
- Em rigor, não é a violência material com que um exército esmaga em batalha o seu adversário, aquilo que produz efeitos históricos. A vitória actua, mais do que materialmente, estabelecendo com clareza a qualidade superior do exército vencedor na qual, por sua vez, aparece simbolizada, significada, a superior qualidade histórica do povo que formou esse exército. Só quem tenha uma ideia arbitrária da natureza humana tachará de paradoxal a afirmação de que as legiões romanas, e como elas todo o grande exército, impediram mais batalhas do que as que fomentaram. O prestígio ganho num combate evita outros tantos, e não tanto pelo medo da opressão física como pelo respeito pela superioridade vital do vencedor. […]
Do mundo celta, ficou-nos o registo da existência de confrarias
guerreiras com as suas próprias tradições e histórias sagradas, histórias essas
que foram a fonte de inspiração directa para muitos dos textos do ciclo do Graal.
Também aqui, no Ocidente Peninsular, no mundo dos povos lusitanos, havia esse
tipo de confrarias guerreiro-iniciáticas, mas infelizmente não nos ficou
registo das mitologias que as inspiravam. Saindo da Alta Idade Média, a Europa
dá sinais de vitalidade e abre-se através do movimento das Cruzadas. Mas estas são uma mostra
clara da rudeza e do barbarismo que imperavam na sociedade medieval da época.
É então que vai surgir um amplo movimento, com diversas facetas, de espiritualização
dos costumes. O ideal cavaleiresco, que desde o século V d. C. tinha inspirado certos
núcleos da nobreza medieval, toma um novo fôlego com a emergência das ordens
monástico-militares, desde logo com a fundação da Ordem do Templo em 1118.
Para além de cavaleiro, o guerreiro também era monge». In Paulo Alexandre Loução, Dos
Templários à nova Demanda do Graal, O Espírito dos Descobrimentos Portugueses,
Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-26-9.
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