Três retratos contrastantes
«(…) Não admira, é claro, que se tenha imposto o primeiro
deles, quando desapareceram os grupos que os tinham criado e os iam
transmitindo à posteridade e que os estrangeiros também tivessem esquecido os
outros. A nação precisava do mito que aquela tradição transmitia para se rever
como protegida por Deus através da protecção que Ele concedera ao seu primeiro
rei. A monarquia não podia deixar de lhe dar preferências, porque a colocava a
si mesma no âmbito do sagrado e, portanto, da permanência para além da morte. Significava
que o seu fundador fora suscitado pelo próprio Deus e que transmitira aos seus
sucessores uma missão divina. Passadas as agressões almóadas, outros perigos
não menos graves ameaçaram a nação. A vitória sobre os primeiros dava fundada
esperança que a ajuda de Deus não faltaria também para defender os portugueses
de todas as provas. Todavia, curiosamente, a imagem clerical tardou muito a
alcançar a exclusividade.
Ainda no princípio do século XV, o cronista oficial da
corte, muito provavelmente o próprio Fernão Lopes, narrava na Crónica
de 1419 os feitos do nosso primeiro rei não apenas a partir das
memoráveis vitórias enumeradas outrora em Santa Cruz de Coimbra mas também com
base na Gesta. A ideia do carácter sobrenatural da monarquia aparecia
também na mesma crónica. Não tanto, porém, em virtude de um elogio moral do
género daquele que o cónego de Santa Cruz produzira mas juntando a uma
adaptação da Gesta um relato do milagre de Ourique que explicava a
origem divina das armas da família real, que depois se tornaram as do reino, e
centrando em torno deste episódio a memória nacional acerca de Afonso
Henriques. Assim, quem dava o tom à mentalidade corrente da corte
durante o reinado de João I eram ainda os nobres e leigos e não os clérigos. O mito
de Afonso Henriques tinha ainda uma forte marca profana. O retrato do herói
colérico e com um destino trágico seduzia ainda a corte e não parecia indigno
aos cortesãos desse tempo que a monarquia tivesse sido fundada por um homem
assim. O rei não se tinha ainda apropriado do halo sagrado com que depois se
veio a envolver. Os escribas da chancelaria constituíam, sem dúvida, o grupo
pensante, mas a sua linguagem era menos acessível que a dos trovadores e
jograis e demasiado subordinada aos seus pontos de vista.
Os juristas não tinham ainda notado que o retrato resultante
das acções contadas na Gesta não era muito conforme com o
ideal do monarca que eles tinham começado a impor na prática desde o século
XIII. Assim continuou a ser, segundo parece até ao reinado de Manuel
I, visto que Duarte Galvão ainda transmite as duas imagens de Afonso
Henriques. Seria preciso que as funções de cronista-mor fossem
entregues aos monges de Alcobaça, já no princípio do século XVII, para que,
finalmente o retrato clerical de Afonso Henriques se impusesse como o único
verdadeiro e apagasse os que os outros grupos sociais dele tinham
traçado quatro séculos antes. O mais impressionante é que ele se tenha mantido até hoje como o único conhecido e que
fosse dotado por sábios investigadores e eruditos académicos de todos os
caracteres da veracidade científica. Isto não teria sido possível se
não se tivesse tornado um dos mitos que têm por função primordial sustentar a
identidade nacional».
FIM
In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação
Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa,
ISSN 0871-7486.
Cortesia de Edições Cosmos/JDACT