domingo, 9 de junho de 2013

As Três Faces de Afonso Henriques. José Mattoso. «Os juristas não tinham ainda notado que o retrato resultante das acções contadas na “Gesta” não era muito conforme com o ideal do monarca que eles tinham começado a impor na prática desde o século XIII»


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Três retratos contrastantes
«(…) Não admira, é claro, que se tenha imposto o primeiro deles, quando desapareceram os grupos que os tinham criado e os iam transmitindo à posteridade e que os estrangeiros também tivessem esquecido os outros. A nação precisava do mito que aquela tradição transmitia para se rever como protegida por Deus através da protecção que Ele concedera ao seu primeiro rei. A monarquia não podia deixar de lhe dar preferências, porque a colocava a si mesma no âmbito do sagrado e, portanto, da permanência para além da morte. Significava que o seu fundador fora suscitado pelo próprio Deus e que transmitira aos seus sucessores uma missão divina. Passadas as agressões almóadas, outros perigos não menos graves ameaçaram a nação. A vitória sobre os primeiros dava fundada esperança que a ajuda de Deus não faltaria também para defender os portugueses de todas as provas. Todavia, curiosamente, a imagem clerical tardou muito a alcançar a exclusividade.
Ainda no princípio do século XV, o cronista oficial da corte, muito provavelmente o próprio Fernão Lopes, narrava na Crónica de 1419 os feitos do nosso primeiro rei não apenas a partir das memoráveis vitórias enumeradas outrora em Santa Cruz de Coimbra mas também com base na Gesta. A ideia do carácter sobrenatural da monarquia aparecia também na mesma crónica. Não tanto, porém, em virtude de um elogio moral do género daquele que o cónego de Santa Cruz produzira mas juntando a uma adaptação da Gesta um relato do milagre de Ourique que explicava a origem divina das armas da família real, que depois se tornaram as do reino, e centrando em torno deste episódio a memória nacional acerca de Afonso Henriques. Assim, quem dava o tom à mentalidade corrente da corte durante o reinado de João I eram ainda os nobres e leigos e não os clérigos. O mito de Afonso Henriques tinha ainda uma forte marca profana. O retrato do herói colérico e com um destino trágico seduzia ainda a corte e não parecia indigno aos cortesãos desse tempo que a monarquia tivesse sido fundada por um homem assim. O rei não se tinha ainda apropriado do halo sagrado com que depois se veio a envolver. Os escribas da chancelaria constituíam, sem dúvida, o grupo pensante, mas a sua linguagem era menos acessível que a dos trovadores e jograis e demasiado subordinada aos seus pontos de vista.
Os juristas não tinham ainda notado que o retrato resultante das acções contadas na Gesta não era muito conforme com o ideal do monarca que eles tinham começado a impor na prática desde o século XIII. Assim continuou a ser, segundo parece até ao reinado de Manuel I, visto que Duarte Galvão ainda transmite as duas imagens de Afonso Henriques. Seria preciso que as funções de cronista-mor fossem entregues aos monges de Alcobaça, já no princípio do século XVII, para que, finalmente o retrato clerical de Afonso Henriques se impusesse como o único verdadeiro e apagasse os que os outros grupos sociais dele tinham traçado quatro séculos antes. O mais impressionante é que ele se tenha mantido até hoje como o único conhecido e que fosse dotado por sábios investigadores e eruditos académicos de todos os caracteres da veracidade científica. Isto não teria sido possível se não se tivesse tornado um dos mitos que têm por função primordial sustentar a identidade nacional».
FIM

In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa, ISSN 0871-7486.

Cortesia de Edições Cosmos/JDACT