quinta-feira, 20 de junho de 2013

Prolegómenos do saudosismo. Teixeira de Pascoaes. Introdução. António C. Franco. «… outra forma de dizer o nada que é tudo, a surpresa de ver duas almas numa, momento muito dramático da fala de ‘Belo’ e que seria depois a solidão essencial, ‘mas não cátara’, se bem que muito completa, não só da poesia de ‘Pessoa’, como de toda a que se lhe seguiu»

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«A melhor maneira de chegar a un entendimento do que é a saudade na obra do Pascoaes passa(rá) pela análise do que singulariza a sua poesia». In Luís Miguel Nava, 1994

Introdução
«Belo (1896-97), não sendo a absoluta estreia poética de Pascoaes, assim foi tido pelo autor quarenta anos depois, nesse extraordinário documentário em prosa a cores que é O Homem Universal (1937), por onde passam num vórtice rodopiante, que muito me faz lembrar o frio vendaval a seco de uma percepção desencontrada ou, se assim quiserem, irreal, o mosquito de Reichenbach, a onda electromagnética e o carro de Apolo, e que acabou sendo, numa altura em que o país vivia a preto e branco, a mais imediata aproximação daquilo que poderia ter sido uma autobiografia de Pascoaes, se não fosse, em exclusivo e sem embaraços, uma escrita do pensamento. Apetece sempre perguntar, quando se fala de biografia de Pascoaes, se este, com quase setenta anos passados na margem do Tâmega, em simples exercícios pedestres entre as mesmas sombras e as mesmas luzes, chegou a ter vida, ou se, por um acaso psicagógico, ele foi apenas uma entidade fantástica, incorpórea, um ponto estático catalisando, num monumental abanão interior o sangue e a substância de muitos povos e raças, tantos que até aqueles que ainda não existiam nem eram para existir, combinações novas ou impossíveis ou tão arcaicas que se perderam para sempre da máscara do símio, são para contar.
O que Pascoaes publicara antes de Belo, ainda com o seu nome de menino, Joaquim, foi um livro chamado Embriões (1895), de que só parece ter sobrevivido publicamente um exemplar, o da Biblioteca Pública do Porto, que pertenceu a Sampaio Bruno, imolada que foi a edição no pátio grande da casa de Pascoaes, virada ao Marão e às estrelas frias e austrais de Orionte. Pascoaes, com dezasseis ou dezassete anos, aluno tristonho e tartamudo do Liceu de Amarante, onde reprovou a Português, para que algum dia se viesse a saber que um Poeta ou mesmo um letrado não são a mesma coisa que um gramático ou um professor e que a escola tem quase tudo de presídio, deu-se então muito com Gregório Nazianzeno Moreira Queirós, seu colega de tirocínio, que por um humilde processo de encurtamento havia mais tarde de adoptar o nome de Neno Vasco, também ele, a ter em conta uma página de memórias de Pascoaes (Guerra Junqueiro, 1950), alferes pronto de poetas e, com certeza, aspirante a revolucionário, ele que se tornaria no mais interessante publicista libertário português da primeira República, que um Abril já do nosso tempo haveria de, pela mão de um João Freire, também ele exemplaríssimo, fazer renascer durante quase vinte anos com a cooperativa editora Sementeira, responsável pela publicação da revista A Ideia (1974-1991).
Salvante esta estória, a das não tanto como isso inesperadas relações de Pascoaes com Neno Vasco, verdadeira embriologia do pensamento final de Pascoaes, o de A Minha Cartilha (1954), esse sim sempre imprevisto e desviante, de Embriões nada ficou, a não ser a boa e leve cinza que para sempre se espalhou nos campos tameganos e que por lá anda ainda mudada em seiva, silva ou polpa. De Belo, por seu lado, ficou tudo, até o que, por transfusão hoje despercebida ou então esquecida, passou para a poética de Fernando Pessoa, na altura de bibe e calção em Durban, em primeiro lugar aquele sorrir e entristecer no mesmo instante, que está num dos mais comoventes tercetos da primeira parte de Belo, e que viria de seguida a ser quer a saudade mágica de Pascoaes quer o não ser sendo de Pessoa, outra forma de dizer o nada que é tudo, e em segundo lugar a surpresa de ver duas almas numa, momento muito dramático da fala de Belo na segunda parte do poema, e que seria depois a solidão essencial, mas não cátara, se bem que muito completa, não só da poesia de Pessoa, como de toda a que se lhe seguiu, num tópico sempre recorrente e sempre presente a que podemos chamar do hermafrodismo com frente e verso». In Teixeira de Pascoaes, Belo, À Minha Alma, Sempre, Terra Proibida, introdução de António Cândido Franco, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 972-37-0429-3.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT