1913-1941
«(…) Como veremos muitas vezes em vários episódios da vida de Cunhal
comunista, muito desse catolicismo de crença ficou no adulto. Não se trata de
repetir o lugar-comum de uma mera substituição de crenças entre o catolicismo
da infância e o comunismo da adolescência, mas de acompanhar a permanência de
um sentido pessoal de dever e obrigação face a valores maiores. Cunhal não substitui
Deus pelo Comunismo, mas sim pela História, o que não é
rigorosamente a mesma coisa, nem tem os mesmos efeitos. Mas o que Cunhal
não substitui nunca é a fé, como ele a sentiu sempre, por coisa nenhuma que não
seja a mesma fé. Em Cunhal, esta fé implica sobretudo uma obrigação ética
individual, um despojamento do mundo, uma vida sacrificial. O mundo assim
sentido acaba por ter um forte sentido de destino, e esse sentido de destino
exerce-se individualmente por uma escolha entre o bem e o mal. Uma raríssima
reminiscência de infância, contada pelo próprio Cunhal à sua biógrafa
soviética Yulia Petrova, retrata a consciência de como o crescimento é um abandono da inocência e a descoberta do mal e
do pecado. Ao mesmo tempo, mostra como Cunhal, ainda criança, é sujeito às
influências muito contraditórias do mundo distinto do pai e da mãe.
Apesar do quadro politicamente correcto em que é contada, como uma história
de proveito moral sobre a vida humana, esta memória infantil é involuntariamente,
como o são as histórias de infância, um retrato de uma difícil e conflitual
afirmação de individualidade Nessa reminiscência, Cunhal parte do mundo da
mãe para o do pai, revelando as tensões que a influência de um e outro tiveram
sobre a sua vida de criança. O local onde tudo se passa pertence à mãe, em
frente à igreja de Seia, a lição de moral cívica, ao pai:
- Cunhal recordou um caso passado na sua infância: tinha ele cinco anos, a manhã estava soalheira. Muitas andorinhas voavam bem alto no Céu, sobre o campanário da igreja. Elas descreviam vertiginoso voo no espaço e baixavam depois com tal rapidez que mais parecia a queda livre de uma pedra. No céu estão as andorinhas, e o céu parecia não ter fundo nem limites; o torvelinho das aves balanceia e inclina o céu para um lado. Até esse minuto, ele recorda o céu... Não se sabe de onde irrompeu um alvoroço, e depois gritos. O céu transformou-se completamente, e ele esqueceu-o. Ao lado encontravam-se rostos corados, de garotos, de olhos e mãos tensos, e um deles apontava a uma andorinha: os garotos atiravam às aves com fisgas. Novamente irrompe uma explosão de gritos infantis: Acertou! Diziam, triunfantes, repletos de entusiasmo. O próprio Cunhal desejou nesse momento alvejar para o elogiarem também. Empunhou rápido uma fisga. Apostou com outro pequeno diabo, como ele, umas quantas moedas em como também acertava. Atirou muitas vezes a cabeça, começou a dar-lhe voltas e nada conseguia; errava sempre. Vociferou, encabulou, mas acabou por acertar. A andorinha tombou no solo. O céu esvaziou-se, cessou de balancear, mas isso já não tinha agora importância: a andorinha estava no solo; gritavam em torno e ele sentia-se feliz. Ao apanhar a ave ainda morna, correu radiante, para a mostrar ao pai. O pai de Cunhal, inesperadamente, afligiu-se: Às vezes, para viver, disse, os homens necessitam de fazer mal. Mas quanto menos se faz isso, melhor. Esta tua façanha não é nenhuma vitória.
Esta é uma história da perda
da inocência. É uma história de desejo reprimido, do conflito entre a
liberdade da vida e o dever de a viver com sentido. Tudo começa na
infância, no céu azul até esse minuto. Então o Céu cai e esvazia-se porque o homem
atenta pela violência contra esse lugar sem
fundo e sem limites, onde tudo está certo e a felicidade é um estado
natural. A história é uma variante da queda de Adão do paraíso, motivada não
pela curiosidade, mas pela emulação, pela vaidade, pela vontade de mostrar que
também se é capaz.
É uma história de pecador que teria
sido liminarmente condenada pela mãe e que é apenas repreendida pelo pai, num
tom pedagógico e tolerante. O mal não é nenhuma
vitória, se não tiver sentido útil, diz o pai. Pela via desta sentença
moral, entra a mais persistente companheira de Cunhal: a História. O pai diz-lhe que na necessidade
da história está também presente o mal. O filho irá, com a sua vida, completar a frase e dizer que é a história a dadora
de sentido para todos os actos, inclusive para o fazer do mal. Cunhal, como todos os comunistas
deste século e do anterior, vai fechar os olhos a esse mal em nome da inevitabilidade
da revolução. Aqui se revela essa espécie de idealismo pragmático típico de
muitos dirigentes comunistas do século XX, uma vontade de dedicação da vida
toda a um ideal que era mais de organização social do que de justiça social,
associada à completa amoralização das decisões subordinadas a um fim que
justificava tudo.
São homens que vêm tudo, ouvem tudo, sabem tudo e aceitam tudo, porque não estão ao mesmo nível dos outros homens, mas acima deles. São santos laicos, que comunicam a sua fé através dos seus sacrifícios individuais numa engrenagem colectiva e anónima. Dentro dela são os mais absolutos individualistas, por detrás do anonimato do colectivo. Por ela são capazes dos maiores crimes, porque, como estão pessoalmente dispostos a sofrer tudo, acham que têm autoridade para impor aos outros a sua verdade. Nesta reminiscência que funciona como fábula moral, Álvaro Cunhal admite a perda da inocência, o mundo da mãe, para encontrar na lição do pai, o passo que o levará a aceitar uma justificação suprema, que o levará do pecado da vaidade ao serviço aos homens.
O Cunhal que conta esta história de infância, já nos seus
cinquenta anos, sabe intimamente que a vaidade foi e é o seu pecado, ou melhor, a sua tentação. Encontrou-a como tentação,
como os eremitas no deserto, muitas vezes desde muito cedo. Jovem fisicamente
belo, brilhante, inteligente, corajoso, sujeito desde muito novo a uma intensa
admiração pelos seus pares e pelos seus próximos, ele sabe muito bem qual é a
maior das tentações em que pode cair e em que muitas vezes caiu». In Pacheco
Pereira, Álvaro Cunhal, Uma Biografia Política, ‘Daniel’, O Jovem
Revolucionário, 1913-1941, Temas e Debates, Lisboa, 1999, ISBN 972-759-150-7.
Cortesia de Temas e Debates/JDACT