«(…) Fazia a vez duma aparição angélica, cavalgando sozinho pelos
campos pedregosos da Terra como se fossem os jardins alados do céu. Agora, dois
anos quase volvidos sobre a morte de Inês,
era um pobre diabo, grosso e disforme, de olhar esgazeado e pêlo grisalho, sem
asas nem luz. Restava-lhe apenas um resto do incêndio em que outrora se
abrasara de amor e que agora lhe servia para saciar crueldades e destemperos.
Também ele, aos olhos de quem chegava do exterior, parecia ser rombo próximo de
alívio naquela acumulação de electricidade explosiva que o homicídio da jovem
aia de Constança Manuel dera em provocar. Mal Pedro tirou a primeira fala, apanhou-lhe a irmã a convulsão
grotesca da voz. Gago, pensou ela. Percebeu de imediato a origem daquela
perturbação e visualizou sem querer o choque brutal de Santa Clara e suas
consequências. Aquele homem, com a voz desfeita, estava destinado a mergulhar
mais tarde ou mais cedo num bloqueio fechado e impenetrável; tornar-se-ia então
um ser incompreensível, emparedado num sofrimento insuportável. Sofria o falar,
como se este fosse o ícone da sua dor. Tanto é castigo para um enfermo do amor
a palavra como o silêncio, pois este por dentro é a cisma duma aflição e aquela
a cifra visível deste. - Tão abatido vos vejo. Que Deus se amerceie de vós, meu irmão - pediu, tomando-lhe as mãos
nas suas.
Pedro, de mais inquieto para
repousar num pedido assim, mostrou-se abstracto. A abstração é a inteligência
dos estúpidos ou a vitória dos impotentes. Talvez fosse este o caso do
príncipe. Vivia rodeado por uma névoa, tingida pelo sangue dos seus horrores,
que tanto lhe servia de alçaprema para atacar como de escudo para defender.
Ainda assim, no círculo da sua aura, tirante a roxo, possuía claridade bastante
para vislumbrar os infortúnios da irmã. Não tardou que esta lhe falasse dos órfãos
ali retidos. - Senhor, peço-vos por mercê
atenção para estes infelizes que o braço da peçonha deixou sem amparo. Tendes
neles ocasião de provardes vossa bondade. Par Deus, não os esqueceis e ponde no
caso toda a vossa ardideza.
Indicou-lhe o príncipe, como quem sabia ao que vinha, João Afonso Telo,
irmão do português assassinado na rua larga de Toro. O valido, ciente do
desastre que caíra sobre a família de parente tão chegado e de tão elevada
fortuna, oferecera-se já para acolher em sua casa os quatro sobrinhos. Estava
casado com urna irmã de Diogo Lopes Pacheco, Guiomar Pacheco, sisuda
senhora de avultado dote, que lhe dera quatro filhos, três rapazes e uma
rapariga, quase da mesma idade dos sobrinhos. - Tirai, alta senhora, o cuidado dos infortunados filhos de meu
desgraçado irmão. Não vos aflijais por eles. O meu tecto será o deles e nenhum
dano daí lhes poderá advir. Se vossa senhoria nisso consentir, a virtuosa mãe
de meus filhos deles ficará sendo mãe e protectora.
Aquietou a rainha. Acordaram os três que dentro em pouco regressaria Pedro por Évora, tomando Telo os
sobrinhos em sua casa. Até lá, o príncipe, que era desde idade tenra grande
monteiro, já que fora criado apartado da corte, nos coutos de Alcobaça e Alfeizarão,
ou nos reguengos da Atouguia e Serra d'El-Rei, desejava bater os montados do
Guadiana à procura de caça grossa. Cevava nas batidas a mesma sede de violência
com que por vezes desbaratava a justiça. Montear era nele uma sevícia, não uma
flor galante da cavalaria. E por vezes misturava às batidas o cível e o crime,
fazendo os beleguins da sua vereação esquadrinhar com minúcia aldeias e casais
à procura dum caso à altura do escarmento da sua chibata ou dum escândalo
merecedor do seu garrote.
No regresso, meia dúzia de léguas depois de Portel, soube a irmã,
doente. A grande vaga de peste que oito anos antes varrera os cinco reinos da
Península, limpando quase metade da população, e que arrebatara em Teruel, aos
vinte anos, a filha mais nova de Afonso IV de Portugal, rainha de Aragão e
esposa de Pedro IV tornara-se endémica e não mostrava disposição de largar os
lugares. Estava a regressar com uma regularidade que intimava ao terror.
Circunstâncias da água ou da atmosfera, disposições do solo ou da vegetação,
eram suficientes para despertar uma nova crise. Uma vaga passageira da doença fazia
então umas tantas vítimas e depois desaparecia, para reaparecer um pouco
adiante, sempre do mesmo modo inexplicável e inesperado.
A região do Alto Alentejo acabara de ser assaltada por uma destas vagas
e um punhado de gente abandonara em fúria os campos à procura da protecção das
vilas, onde clarissas e monjas de São Bento serviam de hospital. A fúria é
táo-só o pânico repercutido em revolta. Évora vira-se submergida por uma onda
de retirantes, que assustam sempre mais pela danação que pelo suplício. Os empestados
foram recebidos pelas irmãs e isolados numa tenda improvisada nos baixios que
ficavam a norte do açougue, fora de cerca; os outros, persuadidos a regressarem
aos seus lugares, debandaram para os arrabaldes. Depois, não se sabia se pelas
águas ou se pela viração que soprara de poente, vinda dos cimos, onde estava o
mosteiro das irmãs de São Bento, alguns vilões apareceram com a doença.
Não tardara que dentro da alcáçova surgissem também casos de moléstia.
Sem razão, a rainha-mãe sofrera tonturas, calafrios, vómitos e um desusado
abatimento do corpo. Injectaram-se-lhe os olhos de sangue, deformara-se-lhe o
rosto, incharam-se-lhe os beiços e a língua. Sobrevieram depois as tumefacções
ganglionares na região cervical e nas axilas. No havia incerteza, a rainha-mãe
de Castela fora apanhada pela landre. Também ela entrava afinal nas contas
daquele choque que a acumulação de energia da morte de Inês tornara inevitável. A peste procedia por arrombamento e
aliviava à força a tensão dos músculos da alma; era uma velha cega que talhava
ao acaso. Fica apenas por saber se o acaso é o arbitrário, se aquilo que é
mister que suceda». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo,
Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT