terça-feira, 18 de junho de 2013

O Sangue. O Vento. A Guerra. Contos. Gonzalo T. Ballester. «De somenos, nas nossas relações com a casa de Los Corrales, é que seja bonita, que o é, uma traça regular de princípios do século XVIII, emolduradas em pedra as linhas-mestras, a cobertura e os vãos, e o resto caiado…»

jdact

O sangue, o vento, a guerra e outras circunstâncias
«(…) O meu avô, por trás dos seus olhos mortos, a atenção posta no que eu conseguia descrever-lhe de tudo aquilo. A minha prima Obdúlia também o ajudava, mas era mais velha, e os compromissos naturais tinham-na fora de casa. E possível que a ela lhe contasse coisas de maior substância ou segredo, questões de família ou histórias graves; mas a mim dizia-me: Vai à estante e traz-me aquele maço de papéis. Eu obedecia, ia-lhe lendo as folhas ou os escritos, e ele rasgava-os depois de me ter ouvido: destruiu assim os testemunhos da sua história política, tinha sido liberal, não sei se de Romanones, creio que sim. E acontecimentos antigos, do tempo de Prim e da Primeira República.

NOTA: O conde de Romanones, de seu nome Álvaro Figueiroa y Torres (1863-1950), foi um político e estadista espanhol importante durante o último quartel do século XIX e o primeiro do século XX; detentor de uma enorme fortuna, que lhe abriu muitas portas, militou sempre nas fileiras do Partido Liberal; era fortemente francófilo, e foi várias vezes ministro e chefe do governo. Juan Prim y Prats (1814-1870) teve bastante influência na vida militar e política espanhola, a partir da década de 40 do século XIX; no fim da sua carreira e da sua vida (morreu num atentado), encabeçou a Revolução de 1868, que tentou esvaziar de conteúdo democrático, enquadrando-a numa perspectiva liberal e monárquica; em 1869, como ministro da Guerra, reprimiu as correntes republicanas que viriam a triunfar politicamente em 1873, com o advento da Primeira República. Esta foi, contudo, de pouca dura pois um golpe de Estado derrubou-a, no ano seguinte.

Com ele aprendi a admiração pelo século XVIII e por Carlos III, que o meu avô punha mais alto que os cornos da lua (o reinado de Carlos II, rei de Espanha de 1759 a 1788, e, portanto, contemporâneo do marquês de Pombal, representou o triunfo dos ideais e da política das Luzes em Espanha, em todos os domínios: reformas na agricultura, na indústria e no comércio; modernização cultural, científica e educativa do país, circulação de ideias, reforma do ensino, tornada possível pela expulsão dos jesuítas e pelo controlo da Inquisição; etc.). Foi ele o primeiro a falar-me dos mações, ele não o foi, mas suponho que por mero acaso, não por temor que lhe causassem as consabidas excomunhões. Não sentia especial apreço pela Armada, apesar dos seus dois genros marinheiros, e embora respeitasse o Exército, nunca me pareceu militarista. Soube, talvez mais tarde, que tinha dilapidado duas fortunas, e que havia sido mulherengo, tal como o seu pai e a maior parte dos seus filhos. Nunca me senti solidário com o modo de entender o trato com as mulheres destes meus antepassados. Imagino que a minha mãe também o compreendeu, e a ela devo certas ideias que, se não me apartaram do pecado, não era esse o seu objectivo, me impediram pelo menos de incorrer na sua superficialidade.
Não revelo nenhum segredo referindo-me ao donjuanismo destes Ballesteres, visto que foi do domínio público, e ao seu simples nome fechavam-se as portas dos gineceus como as da capoeira ao cheiro da raposa, embora também seja certo, que algumas se lhes abriram de par em par, e outras nocturnas e cautelosas, pois sempre houve mulheres para tudo, e eles foram bons moços, generosos, sem regatearem o seu dinheiro e o seu corpo. Destas habilidades e propensões tive notícias desde muito cedo, e talvez a isso se deva a minha prematura curiosidade pelo amor, não só de o viver, também de o compreender, ou, pelo menos, de procurar luz suficiente acerca dele. De nenhuma das minhas estirpes me veio, o que soube conquistei-o por mim próprio, e já há muito que penso no que aqueles frenéticos perderam indo assim sem amor de mulher em mulher, tanta gente que herdou os meus apelidos. Em algo ao menos lhes levo um corpo de vantagem. Do resto, legaram-me o temperamento; quanto às parecenças, a boa figura que os distinguiu, como se fossem de um clã favorecido, coube em sorte aos meus irmãos.
A casa em que nasci não era, pois, a de meus pais; desta falarei, talvez. Foi minha com inteira propriedade, não jurídica, obviamente, mas sim de outra maneira, a que nos permite apropriar-nos das coisas que se amam. Pertenceu-nos, aos meus irmãos e a mim, por a termos vivido, e não apenas habitado; por a termos feito nossa com sucessivos actos de posse, como são nossos as esperanças e os desejos, o medo e o prazer, a necessidade de amar e também a de folgar. É muito possível que o mais profundamente marcado tenha sido o Álvaro, que a considerou como algo mais do que parte de si próprio, a única a que pôde chamar sua, e, se escrevesse, ter-lhe-ia cabido a ele descrevê-la, ou antes, continuar a possuí-la por meio das palavras, já que dos outros modos fomos excluídos. De somenos, nas nossas relações com a casa de Los Corrales, é que seja bonita, que o é, uma traça regular de princípios do século XVIII, emolduradas em pedra as linhas-mestras, a cobertura e os vãos, e o resto caiado, como se usa por aquele Norte». In Gonzalo Torrente Ballester, O Sangue, O Vento, A Guerra, e outras Histórias, Contos, Editorial Caminho, Uma Terra Sem Amos, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0979-0.

Cortesia de Caminho/JDACT