A
Tomada de Ceuta
«(…) Sob
o sol fuzilante de Julho, cortando as águas do Douro, por onde parecia rastejar
um reptil de escamas de topázios, a armada começou, de manso e ordenadamente, a
sair. Como o hortator vemigium das naves
romanas o comitre das galés dera o grito da Eia,
como o Age antigo. E os remos cahiram
á uma nas aguas, que ferveram em espumas; e com um ranger de vigamentos começaram
as naus deslizando rio abaixo. Á proa e á popa accumulavam-se os mais grados
dos combatentes; nos bancos dos remadores, enfileiravam-se sentados, os
galeotes a pintitaes. Eram sete as galés, commandadas respectivamente pelo
Infante Henrique, conde de Barcellos; Fernando, senhor de Bragança, filho do
Infante João e portanto primo de Henrique, Gonçalo Vasques Coutinho, marechal,
filho de Brites Gonçalves de Moura, o heroe de Chaves e Almeida, rival de Martim
Vasques Cunha, de Linhares, um dos verdadeiros preux da corte de João I, João Gomes Silva, alferes-mor, que em
Torres Vedras dissera Russos além!; Vasco
Fernandes Athayde, governador da casa do Infante; e finalmente Gomes Martins
Lemos, que fora aio do conde da Barcellos.
As
naus, em numero da vinte, mais ligeiras do que as galés birémes e triremes, levavam
como capitães: o versatil Pedro Castro, filho de Alvaro Pires Castro; Gil
Vasques Cunha; Pedro Lourenco Tavora; Diogo Gomes Silva; João Rodrigues Sá, o
famoso Sá das galés do cerco de
Lisboa, que as livrou da embuscada do conde de Mayorga, o furioso assaltante da
villa de Guimarães e de Melgaço; João
Alvares Pereira; Gonçalo Annas Souza; Martim Lopes Azevedo; Martim Affonso
Souza; Fernando Alvares Cabral; Estevam Soares Mello, o primeiro qua chegaria
as praias da Ceuta; Mem Rodrigues Refoyos; Garcia Moniz; Paio Araujo; Vasco
Martins Albergaria, que ia ser o primeiro a entrar as portas de Ceuta; Alvaro
Cunha; Alvaro Fernandas Mascarenhas e Ayres Goncalves Figueiredo, o ancião
quasi centenario.
Depois
galeotas, rotundas e pesadas, de carga; e uma innumeravel fustalha, embarcações ligeiras, pequenas, a remos ou a véla,
avançando, cruzando-se umas com as outras, seguindo as margens, derivando no
rasto das gales, galgando as ondinas como cabritos a pular pelos pastos. E
todas as embarcações com suas bandeiras bordadas a ouro, seus galhardetes e
flammulas de seda, seus toldes de damasco e brocatel; o balsão e a divisa do Infante
Henrique sobrepujando todas as bandeiras dos fidalgos, onde se destacavam sens brazões
e motes; e as trombetas soltando á cidade uns toques de despedida enthusiastas:
- Á guerra! Á guerra!
NOTA:
A divisa do Infante Henriqne consistia em huas capellas de carrasco bem acompanhadas
de chaparia, E por meo hus motes, que dezião vontade de bem fazer; Talent de bien faire. E as suas cores
erão brãco e preto e vis. In Azurara, Chronica de D. Joao I. Parte 3.
Sahiram
a barra do Douro e aproaram ao sul. O Porto fez os maiores sacrificios para a
sahida da armada da expedição de Ceuta. Os moradores da cidade deram para ella,
a credito: arnezes, béstas, ferro, madeiras,
cordoalha, vinho, carnes; pagaram a carpinteiros, calafates, marinheiros, etc. Repetidas
vezes impetraram de João I que lhes pagasse o devido, e o Rei nada lhes deu, mas
deixou recommendado ao herdeiro que lhes satisfizesse a divida; o rei Duarte I
tambem nada pagou e egualmente deixou em recommendacao que não se esquecessem dos
moradores do Porto, no tocante ás dividas da expedição africana. Passaram-se
annos e o senado portuense mandou pedir ao Rei que, para descarrego das almas do pae e do avô, se dignasse satisfazer aquellas
dividas, pois os credores até passavam necessidades; muitos já tinham morrido e
viuvas e orphãos eram na miseria. Affonso V respondeu que era sua intenção pagar e logo que houvesse meios o pagaria (Capitulos
especiaes do Porto, nas Cortes de Evora, 1442. Nunca.
De Lisboa
vinha ao caminho Pedro esperar o irmão; assim lhe ordenara João I, de Sacavem, onde
se achava com a Rainha, evitando a peste. Afinal ella havia-se resignado á partida
do Rei; declarara-lhe elle terminantemente que tinha de ir na expedição, um dia
que a procurara na sua camara. D. Filippa tinha então perto de si a Camareira-mor
e a filha D. Maria Vasques, no estrado. Ouviram ellas as palavras do Rei e choraram.
Olhou-as a Rainha com suavidade triste e disse-lhes: - Não choreis, antes encommendai
a Deus o feito de Sua Alta Senhoria. E para o Rei teve ella coragem de dizer,
suffocando soluços de afflicção: - Já que vos e mister ide, e que a vossa jornada
seja muito do serviço de Deus e da vossa honra e de nossos filhos e reinos.
E accrescentou que desejava bem que o rei João armasse cavalleiros os Infantes;
ella cingir-lhes-hia as espadas. O rei accedeu e D. Filippa mandou dizer a João
Vaz Almada que de Lisboa lhe trouxesse tres espadas bem adornadas e bem temperadas.
E continuava vivendo com suas devoções.
Um dia,
com o rebate da peste approximando-se, tiveram de abalar para Odivellas. O
monarca João sahiu primeiro; a Rainha quiz ficar para assistir a um officio religioso
em uma egreja da villa. Quando se achava lá foi atacada da peste. Participação
immediata ao Rei, que voltou n'um prompto; e Affonso Annes correu á praia do Restello,
á armada, a chamar Pedro e Henrique. Deixaram tudo e vieram acudir á mãe, que já
ia começando a agonisar. Na sua camara, soerguida no leito, a pobre senhora chamou
os filhos: - Ora vinde para perto de mim, vinde! Ajoelharam alli os tres; Duarte
chorando como uma creanca; Pedro pallido como cera; Henrique n'um phrenesi de desespero.
Com modo suave disse-lhes ella: - Já não assistirei á vossa empreza, não. - Haveis
de vel'a, sim: Deus o hade querer - volveram os Infantes. - Sim, vel'a-hei… la do
ceo… - e continuou: - Ora tomai, filhos, o lenho da Santa Cruz do Redemptor; que
elle vos defenda na vida e vos ampare na morte.
E dividiu
o fragmento da reliquia pelos tres. Henrique, sombrio, tomou a parte que a mae lhe
dava, e abrindo o jaleco guardou-a sobre o peito, para não mais separar-se d'ella.
E disse-lhes depois a rainha: - Ora, esperai. No quarto só se apercebiam soluços.
O rei João, que não comia nem dormia, de magua, tinha rugidos cavos de
desespero e entrava e sahia, como um doudo, no aposento. - Ora esperai - dissera
a Rainha, com uma voz flebil, quasi como um cicio de aragem, triste, triste… -
João Vaz dai-me as espadas que vos pedi, para meus filhos. O fidalgo
trouxe-lh'as e ella estendeu-as sobre o leito, alinhadas, mirando-as e remirando-as;
eram de boas laminas de aço, de punhos de ouro, cravejados de aljofares. E os Infantes,
de joelhos, alli aguardando. – Duarte - disse ella ao mais velho - toma a tua espada.
Deus te faça um rei justo. - Pedro, foste sempre dado a cavallarias, defende com
a tua a honra das donas e donzellas. - E com a tua, Henrique, protege a fidalguia,
já que és forte.
Todos
eram em choro. D. Filippa cahiu sobre os travesseiros, de extenuada. A seu lado
a Infanta D. Isabel, desgrenhados os seus cabellos cor de ouro, toda em lagrimas,
gemia. Entreabrira os olhos a Rainha e disse, dirigindo-os para a Infanta: - Duarte,
filho, olha por tua irmã e pelos nossos João e Fernando, e por minhas donas e
donzellas. - Senhora, sim. – A custo volveu o pobre Infante. - Deixai vossas terras
a Isabel - lembrou Pedro, desinteressadamente».
In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Memória
Histórica, Primeiro Pémio de Concurso no 5º Centenário, Typografia do Commercio
do Porto, G 286, H5A53, Porto, 1894.
Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT