Madalena e os Evangelhos Canónicos
«(…) Nesta perspectiva, os quatro Evangelhos canónicos serão
considerados como quatro enunciados de quatro narradores diferentes, sobre um
mesmo herói, Jesus Cristo, onde, por vezes, se encontram reiterados episódios e
personagens. Por este motivo não parece relevante estabelecer quaisquer
diferenças entre os evangelhos sinópticos (Marcos, Mateus, Lucas) e o de
João. A multiplicidade de narradores desencadeia igual número de pontos de
vista que afectam não apenas a caracterização das personagens, mas interferem a
nível da própria ordem narrativa. A cronologia das sequências varia e
apresentam discrepâncias entre si. A quantidade e qualidade de informação
prestada também não são idênticas. Porém, em termos literários, incongruências
e discrepâncias não se anulam, pelo contrário, acumulam-se e contribuem todas
para o enriquecimento de uma estória que prova estar em permanente construção.
Considerando, pois, a personagem de Maria
de Magdala, verifica-se que são raras as situações em que é identificada
pelo seu nome. Surge como uma das mulheres que, junto com os apóstolos,
acompanhavam Cristo na sua pregação. Fazendo uma listagem:
- Uma das curadas de espíritos malignos-doenças. É referida como uma das mulheres curadas de espíritos malignos ou doenças: Lucas (8,1-3) - Os doze o acompanhavam, assim como algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças; Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demónios, Joana, mulher de Cuza, o procurador de Herodes, Susana e várias outras, que o serviam com os seus bens.
- Uma das mulheres no Calvário. Pertence ao grupo das Santas mulheres que, no Calvário, assistem à Paixão: Mateus (27,55-56) - Estavam ali muitas mulheres, olhando de longe. Haviam acompanhado Jesus desde a Galileia, a servi-lo. Entre elas, Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu. Marcos (15,42-47) - E também estavam ali algumas mulheres, olhando de longe. Entre elas, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o Menor, e de José, e Salomé. Elas o seguiam e serviam enquanto esteve na Galileia. E ainda muitas outras que subiram com ele para Jerusalém. João (19,25-27) - Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de suamãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria de Madalena.
- Observa onde fica o sepulcro. É uma das observadoras do acto de sepultamento do corpo de Cristo por José de Arimateia (que em Lucas se perde no anonimato): Mateus (27,57-61) - Em seguida, rolando uma grande pedra para a entrada do túmulo, retirou-se. Ora, Maria de Madalena e a outra Maria estavam ali sentadas em frente do sepulcro. Marcos (15,42-47) - Em seguida, rolou uma pedra, fechando a entrada do túmulo. Maria Madalena e Maria, mãe de Joset, observavam onde ele fora posto.
- Testemunha o esvaziamento do sepulcro. É também uma das primeiras testemunhas do esvaziamento do sepulcro e logo, da Ressurreição de Cristo. Em Marcos e Lucas, com a descrença dos restantes discípulos perante a boa nova; em João entra em diálogo com Cristo que ela pensa ser o jardineiro/hortelão, reconhecendo-o por fim, e sendo proibida de lhe tocar, o Noli me tangere: Mateus (28,1-10) - Após o sábado, ao raiar o primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria vieram ver o sepulcro. E eis que houve um grande terramoto: pois o Anjo do Senhor, descendo do céu e aproximando-se, removeu a pedra e sentou-se sobre ela. (...) Mas o Anjo dirigindo-se às mulheres disse-lhes: Não temais! Sei que estais procurando Jesus, o crucificado. Ele não está aqui, pois ressuscitou conforme havia dito. Vinde ver o lugar onde ele jazia. Ide já contar aos discípulos que ele ressuscitou dos mortos, e que ele vos precede na Galileia. Ali o vereis. Vede bem, eu vo-lo disse! Elas, partindo depressa do túmulo, com medo e grande alegria, correram a anunciá-lo aos seus discípulos. / E eis que Jesus veio ao seu encontro e lhes disse:/ Alegrai-vos. Elas, aproximando-se, abraçaram-lhe os pés, prostrando-se diante dele. Então Jesus disse: Não temais! Ide anunciar a meus irmãos que se dirijam para a Galileia; lá me verão;
- […] Noli me tangere - testemunha a Ressurreição. João (20,11-18) - Maria estava junto ao sepulcro, de fora, chorando. Enquanto chorava, inclinou-se para o interior do sepulcro e viu dois anjos, vestidos de branco, sentados no lugar onde o corpo de Jesus fora colocado, um à cabeceira e outro aos pés. Disseram-lhe então: Mulher, porque choras?” Ela lhes diz: Levaram o meu Senhor e não sei onde o colocaram! Dizendo isso, voltou-se, e viu Jesus de pé. Mas não sabia que era Jesus. Jesus lhe diz: Mulher porque choras? A quem procuras? Pensando ser ele o jardineiro, ela lhe diz: Senhor, se foste tu que o levaste, diz-me onde o puseste e eu o irei buscar! Diz-lhe Jesus: Maria! Voltando-se, ela lhe diz em hebraico: Rabun ni! que quer dizer Mestre. Jesus lhe diz: Não me retenhas, pois ainda não subi ao Pai. Vai, porém, a meus irmãos e diz-lhes: Subo a meu Pai e vosso Pai; a meu Deus e vosso Deus. Maria de Madalena foi anunciar aos discípulos: Vi o Senhor, e as coisas que ele disse.
Resumindo, Madalena aparece
sistematicamente em grupo pouco se diferenciando das outras suas companheiras
também nomeadas. A sua particularidade reside em ter sido curada da possessão
demoníaca. À partida, mesmo em termos evangélicos, isto não representará necessariamente
uma situação de pecado, pois
há outros possessos que não são considerados pecadores. São ferozes e ainda aparentemente
neutros. Depois da diferença em João, Madalena
é de novo incluída em vários conjuntos. O das milagradas, as mulheres curadas
de doenças, o que lhe vai permitir venha a ser associada com todas as outras
figuras femininas dos Evangelhos nas mesmas condições,
recorde-se a mulher do fluxo, que a tradição tanto vai identificar com ela,
como com a sua pseudo-irmã Marta. O das mulheres que serviam a Cristo
com os seus bens, justificando
a tradição da sua provável riqueza e abastança. Sempre em grupo, continua a
pertencer às mulheres que assistem à Paixão. À distância, observa o
sepultamento de Cristo e fixa o local onde o corpo é depositado. No dia
seguinte, dirige-se ao túmulo sem intenções explicitadas, ou com o objectivo de
ungir o corpo de Jesus, é uma das mirróforas.
Confirma a ausência de cadáver e testemunha a Ressurreição, sendo uma das
primeiras transmissoras da boa nova
em que os apóstolos não crêem. Só em Marcos e João se apresenta
individualizada pelo diálogo que estabelece com Cristo ressuscitado, que lhe
aparece antes de visitar sua Mãe». In Helena Barbas, Madalena,
História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT