terça-feira, 18 de junho de 2013

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. « Onde se erguiam palácios, alteia a palmeira, símbolo da solidão; onde percorria uma turba ávida, buliçosa, vagueiam solitárias borboletas sobre os arbustos; ao brilho dos xailes de Kachemira…»

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Estão pelos telhados e janelas velhos e moços, donas e donzelas. In Camões

Goa
«(…) Uma ponte, ou antes uma estrada-ponte, dá entrada para Ribandar. Altaneiras fachadas de antigos solares descobrem-se sucessivamente por entre o arvoredo que cobre o outeiro. Do sopé sobem as casas em anfiteatro, todas com a fachada para o rio; em baixo fica a única estrada cortada em rocha viva e, alguns metros inferior ao seu nível, a linha de casas com balcões e jardins sobre o rio, e escadas para subir à estrada. Tal é a antiga Rajah-Bandar ou cais dos rajás.

O rio estreita-se depois de Ribandar, e as sombras das palmeiras e salgueiros dão-lhe a cor esverdeada e mansa de um lago. De um lado as choupanas dos pescadores, de outro os plainos cobertos de vastos arrozais. Defrontando Ribandar e a Velha Goa, as ilhas de Chorão, Divar, Santo Estêvão, encimadas de igrejas e conventos desmantelados; irrompem daquele vasto paul, cortado de regueiros, alagoas, arrozais e salinas, em perspectiva risonha e caprichosa. Quase ao nível do rio e a perder de vista, alastram-se os arrozais, verdes, ondeantes e listrados de faixas de água, que o sol doura a primor. Perdidas por aquela pequena Holanda serpenteiam à noite as canoas de pesca com fogueiras acesas à proa, enchendo o espaço de um clarão rubro e sombras fantásticas.
Por terra tudo é agreste, a temperatura húmida, a luz mortiça, que o sol vai esparzindo sobre arcos meio sustidos no ar, cruzes partidas, palácios derrocados, morros aqui, fachadas ali. Regueiros de água doce serpenteiam por entre os muros amparados por uma rede de raízes esbranquiçadas, que parecem cobras, e pelos palmares, como a única melodia daquela paisagem umbrosa e rude na sua beleza sem arte. Vêem-se frontispícios de palácios sumptuosos fantasmaticamente erguidos com o vão das janelas e portas, deixando entrever, do outro lado, o céu e as ruínas de outros palácios. Destas frestas, meio escondidas de trepadeiras, saem troncos de árvores palmeiras curvadas que à noite parecem monstros espreitando a rua por onde raras vezes passa alguém. Tais são os subúrbios da antiga metrópole, S. Pedro, Panelim, ninhos despedaçados naquele matagal imenso.
Despontam já as moles imensas dos conventos, a torre da Sé, a cúpula de São Caetano, seis templos, enfim, alujando ente um palmar enorme. Nenhum galeão surto da Ribeira das Galés, flâmula alguma ondula ao sabor da brisa por sobre o baluarte de outrora, nem jaos malaios, negros ou mouros se agitam pela margem do rio; e os sinos não repicam, os fidalgos não atravessam pela cidade em fogosos corcéis, nem as damas velam os seus formosos rostos com dourados véus... Só o Arco dos Vice-Reis se levanta aí, como paródia reles das grandezas que já lá foram:

Vim assistir ao desabar da glória!
Ter de mostrar às tribos estrangeiras
por todos os brasões da nossa história
só desertos, ruínas e caveiras.

Depois de Lenschotten, Pyrard, Buchanan, Cottineau e Dellon era preciso que uma alma portuguesa chorasse sobre esses ruínas. Ao suave e apaixonado cantor de D. Jayme coube esta glória. Para tanta poesia, só um poeta, para tanta amargura, só a alma triste de um português. Aquela Goa, tão afamada na História e tão admirada pelos viajantes dos séculos XVI e XVII, nem, pelo menos, indica o que outrora foi. Só a tradição pode fazer crer que aquele cemitério fora jardim, que aquele sombrio e húmido palmar fora empório de luxo e fausto oriental ainda não excedidos. Onde se erguiam palácios, alteia a palmeira, símbolo da solidão; onde percorria uma turba ávida, buliçosa, vagueiam solitárias borboletas sobre os arbustos; ao brilho dos xailes de Kachemira, dos tapetes da Pérsia, das pérolas de Ceilão e do ouro de Golconda, o pálido reflexo do pirilampo vem esmaltar aquele esfarrapado manto da nossa miséria:

Rajás de Bisnagar, A vossa Goa é nada!
Filhos de Siva-Rai, é sombra o vosso império!
A flor do Mandovi cai murcha e desfolhada!
Afilha de um jardim tapiza um cemitério!...

...Mas, se o formoso sol que a minha mente sonha
não rompe a cerração, nem calma adversos ventos;
roubando-nos à luz, poupai-nos a vergonha!
Caíde sobre nós, heróicos monumentos.

O poeta, apesar dos seus bons desejos, pressentiu o que quer que é de triste, de vergonhoso, no futuro da nossa Índia, e dá lugar a todo o seu orgulho de português.

Caíde sobre nós heróicos monumentos!

In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

A saudade do Álvaro José (onde quer que estejas!)
Cortesia de Ésquilo/JDACT