quarta-feira, 19 de junho de 2013

Crónica. Saudade da Literatura. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «Se a beleza se comesse já o bicho teria acabado em algum vernissage ou em qualquer banquete oficial, não ficava à espera de um desempregado que passasse...»

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Os Olhos e a Barriga
«A notícia veio nos jornais: um desempregado de 23 anos, pai de dois filhos, deitou a mão a um dos belos cisnes do lago do Parque de Basílio Teles, em Matosinhos, torceu-lhe o pescoço e levava-o para casa, para o jantar da família, quando foi apanhado por um polícia. Os cisnes são, desde tempos imemoriais, símbolos de beleza e de perfeição e, nessa qualidade, bibelots vivos da decoração de lagos e jardins. Nos jardins suspensos da Babilónia; nos do shogun, em Kyoto; em Pequim, nos do imperador; nos lagos imensos do palácio de Kublai Khan, como nos do edénico jardim inicial, vogaram, vogam eternamente, cisnes. Sob as suas formas tranquilas e longilíneas se ocultou Zeus para seduzir Leda e desse amor nasceu Helena, por cuja beleza morreram Aquiles e Heitor, Páris e Ajax, Ifigénia e Polixena, e caiu para sempre, em chamas, a orgulhosa Tróia.
O infeliz herói desta crónica, todavia, não teve pelo seu lado nem a complacência dos deuses nem a do polícia de giro. Passeava no Parque de Basílio Teles quando topou com o cisne e, em vez de lhe dar para qualquer arroubo helénico, muito prosaicamente representou à sua frente sete ou oito quilos de carne vogando ociosos e inúteis nas águas paradas. Quem o culpará de, em vez da memória de Leda e de Zeus ou em vez de ter escrito uma ode, lhe terem ocorrido coisas mais corriqueiras, como a mulher e os filhos com fome em casa e o crédito esgotado na mercearia? Vejo Charlot perseguido pelo garimpeiro de A quimera do oiro de faca e garfo na mão, e, que Apolo me perdoe, um cisne sempre é mais parecido com um frango do que o homenzinho do côco e da bengala!
O gesto do desempregado, debruçado, como Narciso, sobre as águas, agarrando pragmaticamente o bicho pelo pescoço, não fiçará na história da arte; mas há-de reconhecer-se-lhe dignidade para ficar na história da vida, pelo menos na da sua miserável e concreta vida de português de Matosinhos, em 1985, mais precisado do efémero útil do que do eterno agradável.
O Tribunal de Polícia vai agora ser chamado a dirimir na antiga questão da arte pela arte ou da arte pela vida. E, como é de esperar, optará (muito concretamente) pela mais abstracta das duas posições, e o homem de 23 anos aprenderá à própria custa coisas essenciais: que os cisnes são para encher os olhos e não a barriga e que a beleza não se come. Se a beleza se comesse já o bicho teria acabado em algum vernissage ou em qualquer banquete oficial, não ficava à espera de um desempregado que passasse...»
In Manuel António Pina, JN, 05de Outubro de 1985

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio & Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT