quinta-feira, 20 de junho de 2013

Prolegómenos do saudosismo. Teixeira de Pascoaes. Introdução. António C. Franco. «Belo, tal como o poemeto que se lhe seguiu, “À Minha Alma” (Maio, 1898), passou inteiramente despercebido na altura, quer porque a época se entretinha com coisas mais rendosas, como o teatro e os folhetins, quer porque a distribuição dos magros opúsculos»

jdact e cortesia de wikipedia

A melhor maneira de chegar a un entendimento do que é a saudade na obra do Pascoaes passa(rá) pela análise do que singulariza a sua poesia. In Luís Miguel Nava, 1994

Introdução
«(…) Monta ou conta depois disto falar do Amor em Belo, nome que remete para o adjectivo homónimo, mas também para etimologia hebraica (Baal, senhor) ou grega (Belos, filho de Poseidon), a primeira destas com uma carga osiríaca nada desprezível para se entender a mística do amor que passa por Pascoaes vinda de Bernardim e de Leão Hebreu, se não de Dante e de Plotino, para já não falar dos não menos próximos Ibn Masarra e Ibn Arabí de Múrcia, e a segunda com um lastro marinho, onde despontam, pela primeira vez, os arquétipos transitivos, bem consentâneos, afinal, de uma antiga tradição navegante e camoniana? É claro que sim, mesmo que, por um golpe de rins, que nos desvenda desde já alguns dos segredos do futuro saudosismo, aqui ainda e apenas nos seus preliminares, e preliminares irreconhecíveis, as verdadeiras zonas erotóforas destes amantes pascoalinos sejam todas interiores, como se nele o psíquico fosse ainda mais sensível e pele a pele que o físico, o que não põe de lado, antes pelo contrário incita, uma luxuosa imagística sensual, tocando imprevistamente, se não ofensivamente, os sentidos do hiperfísico, como se Psique aceitasse descer, com os seus bálsamos mágicos e os seus deliciosos unguentos ao desolado e cego corpo de Eros, para este poder, em glória e clarão, subir até ao deslumbrante e muito luminoso mundo da alma.
Daí a luxúria e a abundância de imagens sexuais, como licor de mel, pernas níveas, lago de auroras e d'essências, montes de mel e de cristal, ainda mais espantosas quando acertamos de ver que, pelo menos na aparência, a presença feminina, como uma Shéquina sempre intangível, vive aqui um exílio de estrelas, em perpétua demanda, mas também em afastamento constante, dispersa nesse céu distante e ideal em que já um inconsolável Bernardim perdido por cátaras e Caterinas a pusera, o que, feitas bem as contas, não nos devia siderar assim tanto, já que em Pascoaes, e logo desde o princípio, por via daquele hermafrodismo com frente e verso, o amor quanto mais ausente e solitário, quanto menos biológico e visível, mais erótico e intenso.
Mesmo tendo em conta a surpresa deste quase primeiro livro de Pascoaes, e até os comentários que sobre ele o seu autor escreveu quarenta anos depois em O Homem Universal, o livro nunca foi reeditado em vida do autor, nem mesmo naquelas obras completas que ele parece ter dado à estampa em edição de autor por volta do fim dos anos vinte e princípio de trinta, em que publicou ou republicou seis volumes de versos, num total de mais de mil páginas compactas em corpo 10, tendo sido preciso esperar pelo esforço, pela devoção e pela inteligência de Jacinto Prado Coelho, a quem não regateamos o título de Mestre nos estudos relativos a Pascoaes, para o ver em letra de forma, em 1965, pela segunda vez, quer dizer nada menos que sessenta e nove anos depois, e isto na abertura do primeiro volume das Obras Completas de Teixeira de Pascoaes (OCTP) da Bertrand, primeiro volume esse que aqui se dá de novo a público mas não como edição crítica, trinta e dois anos depois, como modesta homenagem e memória.

Belo, tal como o poemeto que se lhe seguiu, À Minha Alma (Maio, 1898), passou inteiramente despercebido na altura, quer porque a época se entretinha com coisas mais rendosas, como o teatro e os folhetins, quer porque a distribuição dos magros opúsculos de Pascoaes se ficava pela família e arredores. À Minha Alma, por exemplo, a fazer fé em Álvaro Bordalo e na sua Ficha Bibliográfica (1950), teve uma estreitíssima edição de trinta exemplares, não sabemos se por causa das despesas com a tipografia, a de França Amado em Coimbra, se por causa das maçadas da expedição postal. Também o poemeto de 1898, de que só conhecemos hoje o exemplar pessoal de Pascoaes guardado em Gatão, com a surpresa de treze versos inéditos manuscritos a tinta na contra-capa, teve de esperar perto de sete décadas para ver a luz na sua versão original, que versões remodeladas do poema foram aparecendo, primeiro na segunda edição do Sempre (1902), a que já iremos, e depois, com muitas alterações, a ponto do poema poder passar por irreconhecível, na segunda edição de Terra Proibida (1917), a que também iremos.
A primeira versão do poemeto publicado em 1898, seis ou sete meses antes da primeira publicação do Sempre, assim o diz o seu autor no prefácio que escreveu para a terceira edição deste último livro, apresenta quarenta e nove quadras e estrofe final de nove versos, todos eles dodecassílabos, num total de duzentos e cinco versos, expondo ainda dedicatória A Ela, / O momento mais santo da minha alma, enquanto a segunda, de idêntico título, se apresenta, já sem dedicatória, dividida por três partes, com cinquenta e oito quadras e sem a estrofe mais longa do remate final, num total de duzentos e trinta e dois versos, também dodecassílabos, que estabelecem indisputavelmente uma interacção textual com os da pagela publicada em 1898.
Pascoaes, no antelóquio da terceira edição do Sempre, onde estas e outras miudezas de crítica textual ganham um inesperado relevo, citou, sem diferença nem desconfiança, versos das suas versões, dando desse modo a perceber que ainda perfilhava, e com ganas, passagens de ambas». In Teixeira de Pascoaes, Belo, À Minha Alma, Sempre, Terra Proibida, introdução de António Cândido Franco, Assírio & Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 972-37-0429-3.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT