domingo, 23 de junho de 2013

Marânus. Teixeira de Pascoaes. Prefácio de Eduardo Lourenço. «E as saudades e as dores que sofremos? E a voz e o som? E os olhos que nos fitam quando, à noite, dormindo, percorremos: não sei que misterioso e fundo abismo»

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E a Saudade chegava a grande altura do claro sol, nas asas, no seu canto. E o sol anoitecia de ternura, e punha um véu de lágrimas na face. In Marânus

(…)
E vi fazer-se, em mim aquela Noite
originária; a Noite primitiva
que era o mundo em espírito somente,
verbo por encarnar em forma viva,
em tenra cor alegre e palpitante...
Sonho, amor, esperança adormecida,
vaga penumbra de verão madrugante...

Prefácio 
«É um lugar-comum, diante destes e outros versos, evocar o panteísmo de Pascoaes. Talvez não seja de todo inadequado, mas com a condição de ressonância heterodoxa, de assimilar esse Pan-Deus em Deus-Pan, substância de todas as coisas, ao Homem mesmo, ao sujeito que reconhece em si a Noite originária, como reconhece todas as formas da natureza e do espírito enquanto expressão e fruto da sua própria confusão com a Noite, virgem. Mãe da criação, das almas, dos fantasmas e de aquelas edémicas manhãs. O dolorismo, visionário de Pascoaes, o seu budismo espontâneo que pareceria exigir uma negação da realidade inteira, uma concepção pessimista da existência digna de Schopenhauer e do mais negro Antero coexiste com o redentorismo de que a saudade será na ordem do sentimento a paradoxal mediadora. Sensível à presença e ao mistério do Mal, Pascoaes, como os gnósticos, prefere imaginar que a Criação não é tanto o efeito da omnipotência e da bondade de Deus mas a sua dor e a sua imperfeição, de certo modo, o seu sofrimento, numa clara e audaciosa transposição em termos cósmicos, da paixão de Cristo:

Deus sofre no Universo; e nele vive
pregado e ensanguentado; e os astros são
cravos que as mãos e os pés lhe dilaceram;
e seu perfil divino é escuridão!
E seu divino sangue é luz de estrela
que das suas feridas, sempre abertas,
escorre e se derrama, e se congela
em arvoredo, em ave e lírio triste!

Se de panteísmo se trata, convenhamos que nada tem daquela tonalidade euforizante, pânica, energética das versões panteístas clássicas, mas os estigmas do que se pode chamar mais do que dolorismo, um autêntico gosto de sofrer, masoquismo transcendental ou narcisismo metafísico, de auto-confusão com o universo-sofrimento. A sua expressão sublimada, e poeticamente sublime, consiste em ver nessa imperfeição do criado a suprema perfeição:

Assim o mundo, ó Deus, é tua sombra!
E tudo quanto, neste espaço, existe
é a tua estranha dor e imperfeição:
tua parte mortal, nocturna e triste
e frágil, mentirosa e transitória!
E onde estás, mais presente e verdadeiro
e mais vivo, talvez, que em tua glória,
em teu deslumbramento e luz divina!

Na verdade Pascoaes nem é menos paradoxal, nem menos complexo, nem menos estranho que Pessoa:

Um sonho de que é feito? E a nossa imagem
que tem na luz, um lívido recorte?
E a sombra que na água projectamos?
E o nosso espectro erguido além da morte?

E as saudades e as dores que sofremos?
E a voz e o som? E os olhos que nos fitam
quando, à noite, dormindo, percorremos:
não sei que misterioso e fundo abismo.

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT