NOTA: De acordo com o original
«(…) Fernão
de Magalhães appareceu para continuar as façanhas e as glorias marítimas
de Colombo, de Solis e Vasco Nunes de Balboa.
Seis annos depois que Balboa, diz Alexandre Humboldt, com a espada na mão se mettia
nas ondas até ao joelho, e pensava tomar posse do mar do sul em nome de Castella,
dois anos depois que a sua cabeça rolava no cepo do verdugo, quando foi a insurreição
contra o despotico Pedrarias de Ávila,
cruzava Magalhães o mesmo mar do sudoeste
ao noroeste n'um espaço de 1850 myriametros.
Fernão de Magalhães começou a cursar os exercicios de guerra n'aquelle grande e
lustroso theatro onde ceifavam as suas palmas, e os seus loiros, os Almeidas e os Albuquerques. Educado
na côrte dos reis, ao serviço da rainha D. Leonor, e depois na de el-rei Manuel
I, não era o seu animo varonil e aventureiro para casar-se de boamente com o remansado
viver dos paços, onde o ócio é apenas temperado pelas fúteis occupações da etiqueta
cortezan. Sentia-se porventura enclausurado o espirito d'aquelle que de nada menos
se satisfez, que de navegar extensos mares desconhecidos e legar o seu nome aos
fastos mais illustres da moderna geographia.
Quasi logo ao principiar
das gloriosas guerras da India se foi a provar fortuna, levando por mestre e capitão
tão exemplar soldado como Francisco de Almeida, o qual ia então a governar e adiantar
as conquistas portuguezas com titulo de seu primeiro vice-rei. Logo a poucos passos
se illustrou por uma acção nobilissima, que arguia ao mesmo tempo a sua galhardia
e brios de navegante, e a fidalga generosidade do seu grande coração. Vinha Fernão da India para o reino em certa nau.
Aconteceu dar a embarcação nos baixos de Angediva. Não desamparou Fernão
de Magalhães o navio, antes com sua prudência e a auctoridade de seu animo
esforçado conteve a guarnição até que vieram soccorrel-a n'esse lance. O capitão
da nau propunha ao brioso portuguez que n'uma canoa se salvasse. Acceitára Magalhães
o alvitre, com tanto que levasse comsigo um seu companheiro, com quem, apesar de
menos illustre por nascimento e condição,
tinha tracto de amizade.
Oppoz-se o capitão a que na barca se salvasse também o amigo de Magalhães; e Fernão,
por um acto de generosa abnegação e de fidalga humanidade, antes quiz preparar-se
para morrer, salvando o que devia á obrigação, do que comprar a vida por tão baixo
preço de egoismo. Achou-se Fernão de Magalhães na primeira empresa
de Malaca com Diogo Lopes Sequeira, e não desmentiu n'esta façanha gloriosa das
armas portuguezas, os loiros que, por outras acções, lhe cingiam a fronte juvenil.
Em Azamor, saindo uma vez a saltear os moiros, recolheu-se á praça com mais de
oitocentos prisioneiros e copioso despojo dos inimigos, custando-lhe a facção uma
lançada de que veiu a ficar com alguma deformidade no andar.
Depois de cruzar os
mares, de pelejar na Africa e na India, julgou serem bastantes os serviços que prestara,
para que el-rei lhe concedesse em galardão um accrescentamento na moradia, que,
como fidalgo da sua casa, recebia. Era o rei Manuel I grande remunerador de bons
serviços, e mormente dos que eram praticados nas conquistas, em cujo progresso,
primeiro que tudo, se empenhava. Mas Manuel
era rei, e ainda que monarcha absoluto no governo, sempre havia de ter ilhargas,
por cuja conta corresse o afrouxar ou cerrar a bolsa da real munificência. Desde
que houve reis e côrtes, houve também logo invejosos e cortezãos, que se adiantavam
ao throno para tomar o passo aos beneméritos.
Que muito é pois que o soldado
que voltava da Africa e da India, com petição tão justa quão modesta, achasse, ao
entrar nos paços, quem fosse segredar a el-rei umas sonhadas malversações, uns senões
calumniosos, com que a intriga de aulicos e o ciume de espíritos mesquinhos intenta
sempre deslustrar a maior virtude e embaciar o mais peregrino entendimento? Também
Cervantes
jazeu nos ferros de Castella, por lhe arguirem más contas no officio que servia,
e não lhe valeu contra a inveja nem o tiro de arcabuz, com que ficára manco, desde
a jornada de Lepanto, nem o ser príncipe dos engenhos hespanhoes do seu tempo
e porventura dos séculos vindouros. El-rei Manuel I, em vez do despacho que Fernão
de Magalhães sollicitava, ordenou que voltasse á Africa a justificar-se
das accusações que lhe faziam.
Soffreu o illustre portuguez
o desaire do mau despacho, e a affronta ainda maior de lhe taxarem a honra com suspeitas.
E determinando de passar á Africa, d'ali volveu pouco depois trazendo as provas
que testemunhavam a falsidade das imputações. Tornou a requerer, o que sem petição
lhe devia attribuir a justiça da côrte, se côrte e justiça não andassem desavindas
desde tempos immemoriaes. Atravessaram-se os invejosos, e el-rei, cerrando os
olhos ao merecimento, dizem que foi premiar pelos feitos de Magalhães os que n'elles tiveram menor parte.
Fernão
de Magalhães era portuguez, mas antes de ser portuguez era homem, e homem
que se sentia interiormente predestinado para altas empresas e glorias immortaes.
Podia dissimular então a injuria, indo novamente á India vingar-se, morrendo pelo
rei, que assim o tinha aggravado. Fernão de Magalhães, a quem davam realce
os espiritos elevados com que o dotou a natureza, entendeu que pátria e rei, que
de si o demittiam, negando-lhe o honesto salário de seus serviços, e trocando-lhe
o premio pela indifferença, não eram rei nem pátria a quem se devesse fidelidade».
In
Latino Coelho, Fernão de Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos
e publicados sob a direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira,
Empresa Literária Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.
Cortesia de Imprensa
Portuguesa/JDACT