A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) Os cabelos embranqueciam-lhe nas têmporas e na barba curta que lhe
emoldurava o rosto no geral composto, sereno, onde brilhavam aqueles mansos e
inteligentes olhos muito azuis mas onde geralmente se vislumbrava uma certa
indecisão tão característica dos fortes, daqueles que possuem uma profunda
consciência quer da sua força quer das suas fraquezas e pensam muito nas opções
a tomar. Era tenaz mas paciente e homem de honra, de juramentos sagrados e
secretos. Irmão da Janeteira, irmão de Cruz de D. Álvaro, ligava-os
uma fraternidade mais forte que a do sangue. Mas ceder? Ceder como
um cobarde?
De 22 a 24 de Maio reúne-se o Conselho do Rei. O Regente Pedro é declarado
rebelde. Para mais o afrontar, é-lhe fixada a residência em Coimbra e dado um
prazo como a um qualquer inimigo da Nação e da Coroa, a um estrangeiro, para
que demonstre por palavras e factos a sua obediência. Exige-se-lhe que peça
perdão a El Rei. Pedro fica
siderado. Pensar na sua vida, nos filhos, na mulher, no seu destino que, de
repente, lhe voltava as costas?
Naquela filha amada, jovem, inexperiente, ao lado de um marido que lhe demonstrava
um afecto absorvente, mas seria ele
suficiente? Que agonias experimentava D. Isabel, a insegura e
infeliz Rainha de Portugal, assistindo ao drama que, na Corte, prepara o
fim do pai, a tragédia da sua família?
Da mãe, dos irmãos... Sabe-se que ela tentou uma aproximação.
Certamente, numa das noites em que o Rei compartilhava o leito com ela,
tentou acalmá-lo, rodear o mal, dissipar-lhe as suspeitas. Na realidade, o
libelo contra o pai era terrível! O Conselho não encontrava palavras para
defender o pai da Rainha. O Infante Henrique calara-se praticamente e Afonso V mandara as suas cartas a todos os
que estavam do lado do tio, até os seus servidores, qualquer que fosse o seu
estado ou condição, para o abandonarem. Foram fixadas nas praças de Santarém,
publicadas pelos notários em Coimbra… para onde mandou Lourenço Abril, seu
escrivão de Câmara, que foi interceptado pelos homens do Infante e depois
levado até ele. O Regente Pedro respondeu ao escrivão que dissesse ao Rei que
tomaria para si a provisão real, mas não a publicaria:
- Dizei a El Rei meu senhor que eu só torno e retenho em mim esta sua provisão e que não hei por seu serviço e minha honra publicar em tal tempo.
Rebeldia? Mas o
Infante não dizia por seu serviço?
Era uma forma de cinismo? Não. Tratava-se de um acto e um
serviço do Rei. Será que o jovem Afonso teria tomado consciência da extensão da sua atitude? Seria
que Pedro apenas desejava esconder
de seus colaboradores e soldados a
verdade? Que perdera o apoio real, era tratado como um vil traidor e não aceitava o juízo? Talvez ele,
nesse instante, tenha dito para si, como costumava fazer:
- Isso fique a Deus e a sua (e minha) consciência…
D. Isabel, em ânsias, ajoelhou-se aos pés do Rei seu marido. Conhecia o
que podia acontecer ao pai condenado à morte, prisão perpétua ou o desterro e
sabia que o pai apenas, e em derradeiro recurso, só aceitaria a primeira. Sabia
mais. Sabia que ele a escolheria e obrigaria os seus inimigos, inclusive o
próprio genro, a praticar o acto final. A
mãe escreveu-lhe? Ter-lhe-ia a outra Isabel, a duquesa de Coimbra,
ainda nova, temendo pelo seu futuro e o dos filhos, já para não falar do marido
que tanto amava e conhecia, enviado um
recado, uma palavra? E seria necessário?
Aquelas duas mulheres, naquele instante, mãe e filha, viviam o mesmo suplício
sem conseguir encontrar o caminho que levasse a bom porto o frágil barco em que
a teimosia do Infante, as suas razões e defeitos e os ódios e invejas de seus
inimigos, e algumas das suas muitas qualidades, tinham construído ao longo dos
anos. D. Isabel pediu o perdão para o pai. Penso que não lhe restava mais nada.
A culpa estava determinada, descrita, acatada pelo Conselho. O Infante era réu.
Negá-lo de nada valia. Só restava à pobre Rainha solicitar o perdão. Afonso
não perdoou de imediato. Tentou justificar-se:
- Conheço tudo o que dizeis, senhora, mas como posso eu ser brando para vosso pai se ele é tão teimoso e duro no que lhe requeri, não quer conhecer as minhas razões nem se arrepender, pelo contrário, persiste nos seus erros? Mandei-lhe pedir as armas, as minhas armas. Não mas quis entregar. Disse-lhe que deixasse passar o duque, que por meu mando vinha a meu serviço, desobedeceu-me, foi-lhe ao caminho, armado... Porém, pelo vosso amor, principalmente, e porque nisso sinto bem quanto vos amo, se o Infante vosso pai como quem errou me quiser mandar pedir perdão, eu me haverei com ele por outra maneira de que sejais contente.
Há homens que são nobres pelas suas virtudes e, algumas vezes, em situações
difíceis, pelos seus próprios defeitos. Pedro
foi um homem desses. E morreu por isso.
Afonso como Rei anulava a decisão do Conselho se o sogro lhe pedisse
perdão. A Rainha a quem, mais tarde, o irmão chamou manto e consolo da nossa família, o irmão que a morte do pai
lançara no exílio, Pedro também de nome, escreveu ao pai. Imagino a letra trémula
da pobre e jovem soberana a aconselhar o pai, aquele homem de vontade férrea,
apesar das aparentes indecisões, para dizer, como quem tivesse errado, que
solicitava o perdão ao genro... Pois o marido assim lho permitira e
aconselhara! Pedro não podia aceitar.
Mesmo que tivesse culpas, e teve algumas,
não eram as que lhe imputavam.
Conhecia perfeitamente a razão última de toda a situação: o irmão, o primo, os Braganças.
Pensou numa cilada pois era assim, para acatar os sentimentos da filha,
obrigado a requerer um perdão para crimes não cometidos. É interessante
perceber como funcionava a mente de Pedro.
Ele não podia confessar coisa nenhuma porque, negasse ou confessasse mesmo o
que não tinha a confessar, a arma utilizada contra ele funcionava sempre como
uma lâmina de dois gumes. Ele acreditava na filha mas no sobrinho, depois de
tudo, depois de o saber completamente manobrado pelo tio e primo, como poderia
voltar a crer na sua palavra? Mas respondeu. Pela filha.
Só que, ao terminar, redigiu, firmemente: ...e isso, senhora, faço eu
mais por vos comprazer e fazer satisfação, que por me parecer razão que o assim
faça. Claro como água. A prova final. A experiência final. A resposta,
essa, adivinhava-a certamente, enquanto, com o coração oprimido, escrevia as
derradeiras palavras à filha que tanto amava. Era o último espasmo da fera
ferida também. O Rei ficou furioso e arrependeu-se de ter pensado em ceder para
propiciar a concessão do perdão. Rasgou a carta, rompeu com a palavra dada e
berrou, furioso: - Isto é um fingimento! Não aceito! - Deixou a infeliz
Rainha desfeita em lágrimas e saiu porta fora, como se levado por mil diabos».
In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II,
Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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