Datações do Novo Testamento
«(…) A Igreja sempre se preocupou em registar e reprovar os escritos paralelos
que se apresentavam sob a forma de narrações evangélicas. Há uma carta de
Inocêncio I (Papa 401-407d.C.) a Exupério de Tolosa em que o primeiro
denuncia e condena os escritos falsificados por Lêucio. Santo Toríbio de
Astorga, numa sua epístola a Idécio e Cepónio, condena os apócrifos
priscilianistas de uso em Espanha (Otero 1988). Resumindo, só em inícios
do século IV, quatrocentos anos depois de Cristo, fica o cânone definitivamente estabelecido nas suas linhas fundamentais. E
com ele, também a lista dos livros considerados apócrifos ou heréticos. Este
processo resulta da imposição para que sejam seguidos os preceitos veiculados
pelo rol de Eusébio, bispo de Cesareia, o pai da História da Igreja. Nesta
lista são enumerados os unanimemente aceites por todos (os protocanónicos), os
que ainda são objecto de discussão (os deuterocanónicos) e os tidos como
bastardos ou espúrios, que em grego aparecem denominados por coda (Otero 1988)
Nesta coda encontram-se ainda
duas categorias:
- a) a dos textos que, embora não pertencendo ao corpo neo-testamentário, são citados pelos autores eclesiásticos e apresentam um carácter ortodoxo, p. ex. os Actos de Paulo, O Pastor de Hermas, a Epístola de Barnabé, o Apocalipse de João, o Evangelho dos Hebreus, etc.;
- b) a dos textos que, sendo de conteúdo herético, pretendem substituir as escrituras canónicas e por isso se abrigam sob o nome dos apóstolos, o Evangelho de Pedro, de Tomé, de Matias, os Actos de João, etc.
Problemas resultantes das traduções
Às dificuldades acima enumeradas vêm aliar-se outras, de carácter
linguístico, suscitadas pela multiplicidade de versões e idiomas em que aparece
cada um dos textos sagrados. A uniformização vai ser conseguida com a tradução da Bíblia
para latim efectuada por Jerónimo (340-420d.C.),
a Vulgata,
terminada cerca de 384 d.C. e até
agora o texto bíblico oficial da Igreja Católica Apostólica Romana.
Naturalmente, com o tempo foi-se descobrindo que também este traslado tem muitas
deficiências e que houve, por parte do tradutor, um esforço de correcção histórica
e dogmática. Dois exemplos, entre muitos outros:
- o primeiro relaciona-se com a existência, ou não, de irmãos de Jesus, o tradutor transforma-os todos em primos;
- segundo, o decorrente problema sobre os momentos da(s) virgindade(s) de sua mãe Maria.
Isto para dizer que, mesmo quanto aos próprios textos estabelecidos, não
param de emergir entre os eruditos divergências relativamente à interpretação
que se pretende definitiva de um determinado passo ou outro.
A Maria da Torre
Recorde-se que é no Novo Testamento que primeiro surge
uma personagem chamada Maria de Magdalo.
Antecipando um pouco, ficou como dado adquirido que Magdalo/a era um topónimo,
com o significado claro de torre.
Madalena vai ser a Maria
da Torre e veremos nas lendas como esta denominação vem a ser usada
como base para uma caracterização física e psicológica da personagem. O
significado, porém, não será assim tão linear:
- O recurso ao hebraico é muito sugestivo: dá-se geralmente à raiz GaDal, a do Magnificat e de Magdala, o sentido de grandeza que também se adequa à imagem da torre. Daí resulta, no hebraico bíblico, os sentidos derivados de crescimento dos cabelos e das árvores. Em hebraico rabínico onde gadal significa entrançar os cabelos, este sentido aparece mesmo como o principal. Em aramaico, gedilta é trança de cabelo; em acádico, giddu é o cordão entrançado e, em árabe, jaddal significa entrançar fortemente uma corda. O sentido primitivo da raiz GDL aparece assim como indicando a reunião de dois ou mais fios entrelaçando-os. Isto explica que o Talmude que, além do mais, associa Maria Madalena à Mãe de Jesus atribuindo a uma e a outra o epíteto infamante de sadta, qualificará a primeira de serva cabeleireira, megadela, megdêlêt. A palavra grega exmassein empregada por S. Lucas para exprimir o modo como a mulher enxugava os pés de Jesus, sugere a repartição da cabeleira em duas tranças cercando os pés molhados de lágrimas. Representa-se geralmente a Madalena como eremita, vestida com os seus cabelos mas, na Antiguidade, a imagem evocadora era a das duas tranças afastando-se enquadrando o peito. As deusas, Artemísia de Éfeso em particular, eram ditas euplokamos, de belas tranças, de uma raiz que deu dobrar e duplo. É o género de penteado que, nos dizeres do Talmude, Maria Madalena fazia às mulheres, e provavelmente às mulheres estrangeiras, porque as judias cobriam os cabelos com um véu, soltando-os completamente para o banho ritual».
Uma longa citação justificada pelo facto de estabelecer imediatamente uma
síntese entre os vários significados do nome-topónimo de Maria, e uma das suas
principais características ortodoxas, os longos cabelos, que abre caminho para
leituras menos ortodoxas, como a ligação a representações de deusas pagãs da
antiguidade.
Madalena e os Evangelhos Canónicos
Em verdade vos digo que, onde quer que venha a ser
proclamado o Evangelho, em todo o mundo, também o que ela fez será contado em
sua memória. In Mateus 26,6-13; Marcos14,3-9.
Como se sabe, a primeira referência a Maria
Madalena, e que sistematicamente serve de base ao estudo e histórias sobre
a personagem, surge nos Evangelhos. Por tal, estes serão
abordados de um ponto de vista meramente literário. Concretamente, tornam-se
irrelevantes as questões de veracidade histórica e subsequentes preocupações
com a génese e fidelidade dos textos religiosos. Não nos interessa aqui, pois,
a história da formação do Novo Testamento, nem as suas fontes,
nem sequer a actuação da comunidade cristã primitiva enquanto tal. Apenas
importará a desmontagem de alguns dos passos evangélicos em pequenas unidades
narrativas, as quais, junto com outras de variadas proveniências, acabam
enquadradas nos mais diversos contextos originando histórias quase autónomas.
Os Evangelhos
serão entendidos, não como ponto de chegada, mas ponto de partida, e aqui, uma
das fontes, para a construção
da lenda hagiográfica de Maria Madalena
tal como esta se vai projectar nos textos posteriores, inclusive os mais laicos».
In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa,
2008, ISBN 978-989-8092-29-8.
Cortesia de Ésquilo/JDACT