O rei e o reino
«(…) Como se conclui, foi um período fértil em mudanças, aquele que
sucedeu à batalha de Ourique, ou, de outro modo, o que antecedeu proximamente a
chegada da primeira rainha de Portugal. Uma das mais significativas consequências,
de há décadas comummente aceite pela historiografia portuguesa, foi a assunpção
do título de rei pelo chefe dos Portugueses. Não havia muito tempo, uns
escassos cinco anos, que isso acontecera. Depois de alguns meses de ausência,
isto é, sem produção documental que nos seja hoje conhecida, de 7 de Julho de 1139 até 10 de Abril de 1141, pelo meio, apenas um documento
que valeu a data crítica dos anos 1140
ou 1141, a chancelaria de Afonso
Henriques oferece-nos, nesse segundo momento, uma doação de carta de
couto ao mosteiro de Vilarinho, perto de Sabrosa, o que é hoje o primeiro
documento a atestar uma nova intitulação, a de rei, na chancelaria régia, por
parte do chefe dos Portugueses. É, tudo o indica, a prova de uma nova e
diferente dignidade assumida pelo neto do imperador das Espanhas, como esse
órgão houve gosto também em chamar-lhe. Porém, os contemporâneos não confundiam
esta nova fase do governo de Afonso Henriques com o seu próprio
governo. Isto é, há muito, desde 1128,
que estava aceite o mando de Afonso
Henriques. Isso mesmo se conclui dos testemunhos que se reportam ao
cômputo do seu reinado, ou governo, sejam os Annales Domni Alfonsi
Portugallensium regis, documentos epigráficos, em igrejas junto ao
castelo de Soure ou no Minho (Capela de Santa Luzia de Campos, perto de Vila
Nova de Cerveira), ou até fontes narrativas.
Os contemporâneos do primeiro rei contaram-lhe os anos do reinado desde
que iniciou funções de governo, ao desalojar do poder sua mãe, a rainha
Teresa, em 1128. Teremos
ocasião de o verificar até a propósito do epitáfio da rainha D. Mafalda de Mouriana.
Mafalda de Mouriana conheceria também, com mais delongas, as
relações familiares e as preocupações políticas do reino onde viera para
reinar. Das primeiras haveria de compreender como a elas se sobrepunham outros
interesses que as esqueciam ou relegavam, impondo-lhes soluções de carácter
militar que a afirmação do rei e do reino exigia, de quando em vez, nas falhas
da diplomacia. Na sua mescla, em breve terá percebido como o título de rei usado
por seu marido não era afinal de um consenso absoluto em todas as paragens. Facilmente
terá entendido como as posições de Afonso VII de Leão, e mesmo as do seu
próprio marido, eram facilmente mutáveis, consoante as circunstâncias se
alteravam. É muito provável que tenha tido notícias do recontro de Valdevez, em 1141 e, melhor do que nós, porque mais
perto dos acontecimentos e no meio que os protagonizou, tenha podido aferir da
iniciativa do feito e dos receios que mutuamente provocou, e ponto de se saldar
por um confronto cavaleiresco, que os Anais classificariam mesmo como
torneio, chamando-lhe bafordo.
Por outro lado, D. Mafalda facilmente se terá
apercebido de uma outra importante frente de acção do rei e das dificuldades
que ele aí encontrava. Referimo-nos a todo o conjunto de actos do rei de Portugal
relativamente à Santa Sé. Consciente, e bem informado, de que, na organização
dos poderes do tempo, à sobrevivência do reino de Portugal, ao seu reino, era
fundamental o reconhecimento pela Santa Sé, foi também depois de Ourique que Afonso
Henriques encetou o processo de aproximação à Santa Sé, com vista a
esse fim. O passo decisivo foi dado através da vassalagem que prestou à Santa
Sé, em 1143, nas mãos do legado
papal, cardeal Guido de Vico, em Zamora. Foi complementado pela carta
datada de 13 de Dezembro de 1143,
conhecida por Claves regni celorum, expressão retirada do seu incipit, as suas primeiras palavras. Por
ela, o rei de Portugal colocava-se a si, aos seus descendentes e à sua terra
sob a protecção da Santa Sé, em determinadas condições, de que sobressai a sua
constituição voluntária de censitário de São Pedro.
O acto teve eco no pontífice, o papa Lúcio II, que respondeu ao
governante português, em bula datada de I de Maio de 1144. O pontífice aceitava o que era oferecido à Santa Sé, louvava Afonso
Henriques pelas disposições tomadas, garantia-lhe tudo aquilo que ele
havia pedido e solicitava persistência no seu amor à Igreja. Mas não lhe
confirmava o título régio. Todavia, o futuro, diremos mesmo os tempos mais
próximos, não desmerecem uma análise, tendo este ponto por pano de fundo. Se é
certo que não houve a formal aprovação do uso de título de rei a Afonso
Henriques, nem por isso houve recuo na prática do rei de Portugal ou
sintoma, mínimo que fosse, de qualquer embaraço de qualquer das partes.
Se é certo que ignoramos por completo as conversações havidas entre Afonso
Henriques e o cardeal Guido de Vico, bem como eventuais
garantias que este lhe tivesse oferecido em nome do papado, também é certo que
o uso continuado da dignidade régia por parte de Afonso Henriques não
perturbou o seu intenso relacionamento com a Santa Sé em anos sucessivos. Significa
tudo isto que, à chegada de D. Mafalda a Portugal, o reino se procurava
afirmar na Europa do seu tempo, mesmo junto da instância mais poderosa e
universal que ela conhecia. Que assim era, também Mafalda o saberia. Pelo
menos naquilo que dizia respeito aos territórios do centro da Europa, de que as
relações com São Bernardo são um exemplo e que ela bem conheceria.
O reino
Aspecto não menos importante a considerar, à chegada de D.
Mafalda de Mouriana a Portugal, era o território do reino. Afinal, que reino lhe oferecia Afonso Henriques? De há muito que o
centro das terras de Portugal se havia localizado em Coimbra. Para aqui descera ele, após São Mamede, em
busca de um território mais livre de poderes senhoriais, de um espaço mais
próximo dos muçulmanos que lhe permitisse uma mais fácil defesa da sua terra e
uma maior possibilidade de organização de campanhas guerreiras, com vista ao
alargamento do território, e, porque não, ao desejo de façanhas heróicas, que
lhe dessem a legitimação maior de um chefe, segundo as concepções do tempo. Mas
Coimbra era uma cidade com largos anos já, de domínio cristão e uma terra de
fortes lembranças de seus pais. Guardava, entre elas, a conquista do seu foral,
em processo que enaltecia as caraterísticas das gentes coimbrãs, isto é, o apego à liberdade e à tradição.
Afonso Henriques não iria desmerecer o que de melhor lhe trazia
essa herança. É vê-lo, então, a doar os seus banhos ao arcediago da cidade, Telo,
para aí fundar uma canónica, que havia de se afirmar como o grande Mosteiro
de Santa Cruz. O próprio rei se haveria de afeiçoar a essa fundação, a
ponto de fazer dela morada de seus entes queridos quando a morte, inexorável, lhos
começasse a levar em tributo e, mais tarde, a sua própria. No ambiente geral da
Europa da época, D. Mafalda não desconheceria os problemas com os muçulmanos,
tanto mais quanto alguns homens da sua própria família, desde logo seu pai, se
incorporavam também no movimento das cruzadas.
Bem diferente haveria de ser, contudo, quando habitasse uma terra de que eles
eram vizinhos bem próximos». In As Primeiras Rainhas, Maria Alegria
Fernandes Marques, Mafalda de Mouriana, 1133?-1158, Círculo de Leitores, 2012,
ISBN 978-972-42-4703-8.
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