terça-feira, 11 de junho de 2013

Uma Rainha Inesperada. D. Leonor Teles. Isabel Baleiras. «… que Ayala foi não só cronista, como curador do casamento entre o infante Henrique e a infanta portuguesa D. Beatriz; vassalo presente nos juramentos ao “Tratado de Salvaterra de Magos” e participante na Batalha de Aljubarrota, do lado castelhano»

Gravura de mjvalentim e hshaeffer
jdact

Fernão Lopes, a verdade e a história
«As crónicas de Fernão Lopes sobre os monarcas Fernando I e João I (primeira parte) constituem a fonte do nosso conhecimento sobre a vida de D. Leonor Teles. Quanto à participação da rainha no reinado de Fernando I e na regência, é possível encontrar outras fontes, como os diplomas da chancelaria do rei, serviço responsável pela elaboração dos documentos régios, ou outros ligados aos mosteiros com os quais ela se relacionou. A leitura das crónicas, como de toda a outra documentação, deve ser feita com alguma reserva. No caso das crónicas lopesianas, não deveremos deixar de ter em  conta que foram escritas entre 1437 e 1443, ou seja, sensivelmente sessenta a setenta anos depois do reinado fernandino (1367-1183) e da regência de D. Leonor (22 de Outubro de 1383 a Janeiro de 1384). Esta distância temporal, embora não seja muito acentuada, difere da do tempo em que o cronista castelhano Pero López Ayala (1332-1407) viveu. É preciso que saibamos, também, que Ayala foi não só cronista, como curador do casamento entre o infante Henrique e a infanta portuguesa D. Beatriz; chanceler e alferes-mor do rei João I de Castela (marido da dita D. Beatriz); vassalo presente nos juramentos ao Tratado de Salvaterra de Magos e participante na Batalha de Aljubarrota, do lado castelhano. Ou seja, ao contrário de Lopes, foi testemunha ocular de acontecimentos passados na época a que nos reportamos, acontecimentos esses muitas vezes relatados nas suas crónicas.
Por fim, é importante ter em conta que a obra de Fernão Lopes resultou de uma encomenda feita pela dinastia de Avis, nos primeiros anos da sua vigência, quando urgia afirmar o reinado dos novos governantes. A juntar a estes factores, existe a informação de que a maioria dos documentos que fizeram parte dos livros da chancelaria do rei Fernando I (que contém também os diplomas de Leonor Teles) não chegou até nós. Vejamos porquê.
A Torre do Tombo, criada por Fernando I, em 1378, e instalada no castelo de São Jorge, passou a ser o arquivo onde se guardavam os livros das chancelarias régias. Com o passar dos anos, a desorganização foi-se instalando:
  • O grande número de livros de registos, o desconhecimento da língua latina e do português arcaico, a ilegibilidade das grafias antigas, o estado de conservação, a proficuidade de traslados e cópias de um mesmo acto, a caducidade das cartas tornavam inútil uma parte dos diplomas guardados e dos registos feitos e, ao mesmo tempo, dificultavam o exame e a consulta dos mesmos.
Urgia reformular a Torre. Em 1458, por ordem do rei Afonso V o cronista e guarda-mor da Torre do Tombo, Gomes Eanes Zurara, iniciou um processo de depuração e remodelação que marcou para sempre a História e que consistiu no seguinte: escolher nos livros de registo antigos os actos dignos de memória e copiá-los para novos livros de registo. Assim, os dez livros de Pedro I foram reduzidos a um, os dezassete livros de Fernando I resumiram-se a dois (Livros 1 e 2, da sua chancelaria), os quarenta e oito de João I passaram a quatro e os cinco de Duarte I a um. Os antigos livros de registo passaram à categoria de obsoletos e foram esquecidos, até acabarem por desaparecer no reinado de João III; se no inventário de 1526, feito por Tomé Lopes, guarda-mor da Torre, ainda constavam cerca de setenta desses livros antigos, entre os quais os dezassete de Fernando I, no inventário de 1529, elaborado pelo guarda-mor seguinte, Fernão Pina, a respeito do conteúdo deixado pelo seu antecessor, os mesmos já não foram citados. Assim sendo, só depois de João I e, sobretudo, a partir do rei Duarte, voltaram a existir registos primitivos, e não registos reformados, com actos mais numerosos e mais bem conservados do que os livros de chancelaria dos reinados anteriores.
A chancelaria do rei Fernando resume-se actualmente a quatro livros. O primeiro e o segundo são cópias do século XV e englobam todo o reinado. O terceiro é um livro original respeitante aos anos de 1381-1383. O quarto tem fólios originais dispersos que compunham alguns dos livros antigos da chancelaria fernandina, contendo actos produzidos nos anos de 1368-1378. Ao fazer a cópia do registo, o escriba riscava-o com um X ou um traço oblíquo, escrevendo por baixo traslado, passando depois ao registo seguinte, sobre o qual aplicava o mesmo processo.
Devemos ter a noção de que só chegou às nossas mãos a informação que os nossos antepassados quiseram que chegasse. Esta triagem foi feita ao longo do tempo por diferentes agentes. No início, pelos próprios serviços de chancelaria que trabalhavam para Fernando I, depois pelo próprio Fernão Lopes, que foi guarda-mor da Torre e que teve ainda acesso aos dezassete livros iniciais da chancelaria fernandina, e, por fim, pelas depurações praticadas nos séculos XV e XVI». In Isabel Pina Baleiras, Uma Rainha Inesperada, Leonor Teles, Círculo de Leitores, 2012, ISBN -978-972-42-4706-9.

Cortesia de CLeitores/JDACT