«O que faz andar a estrada? É, o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada
permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes
do futuro». In Fala de Tuahir.
A Estrada Morta
«Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as
hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se
mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores
sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar
asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram
ao chão, em resignada aprendizagem da morte. A estrada que agora se abre a
nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos,
suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas apodrecem carros incendiados,
restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir.
Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu
único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo
por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara
toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. Avançam
descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho. O velho se chama Tuahir . É magro, parece ter perdido
toda a substância. O jovem se chama Muidinga.
Caminha à frente desde que saíra do campo de refugiados. Se nota nele um leve
coxear, uma perna demorando mais que o passo. Vestígio da doença que, ainda há
pouco, o arrastara quase até à morte. Quem o recolhera fora o velho Tuahir, quando todos outros
o haviam abandonado.
O menino estava já sem estado, os ranhos lhe saiam não do nariz mas de
toda a cabeça. O velho teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar,
pensar. Muidinga se meninou
outra vez. Esta segunda infância, porém, fora apressada pelos ditados da
sobrevivência. Quando iniciaram a viagem já ele se acostumava de cantar, dando
vaga e distraídas brincriações. No convívio com a solidão, porém, o canto
acabou por migrar de si. Os dois caminheiros condiziam com a estrada, murchos e
desesperançados. Muidinga e Tuahir param agora frente a um
autocarro queimado. Discutem, discordando-se. O jovem lança o saco no chão,
acordando poeira. O velho ralha: - Estou-lhe a dizer, miúdo: vamos instalar
casa aqui mesmo. - Mas aqui? Num machimbombo (autocarro) todo incendiado? -
Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder.
Muidinga não ganha
convencimento. Olha a planície, tudo parece desmaiado. Naquele território, tão
despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade. Por isso ele não
insiste. Roda à volta do machimbombo. O veículo se despistara, ficara meio
atravessado na rodovia. A dianteira estava amassada de encontro a um imenso embondeiro. Muidinga se encosta ao tronco da árvore e pergunta: - Mas na
estrada não é mais perigoso, Tuahir?
Não é melhor esconder no mato? - Nada. Aqui podemos ver os passantes. Está-me compreender?
- Você sempre sabe, Tuahir. -
Não vale a pena queixar. Culpa é sua: não é você que quer procurar seus pais? –
Quero. Mas na estrada quem passa são os bandos (designação popular de bandidos
armados). - Os bandos se vierem, nós fingimos que estamos mortos. Faz conta
falecemos junto com o machimbombo.
Entram no autocarro. O corredor e os bancos estão ainda cobertos de corpos
carbonizados. Muidinga se recusa a
entrar. O velho avança pelo corredor, vai espreitando os cantos da viatura. -
Estes arderam bem. Veja como todos ficaram pequenitos. Parece o fogo gosta de
nos ver crianças. Tuahir se instala
no banco traseiro, onde o fogo não chegara. O miúdo continua receoso, hesitando
entrar. O velho encoraja: - Venha, são mortos limpos pelas chamas».
In Mia Couto, Terra Sonâmbula, Editorial Caminho, Lisboa, 1992, ISBN
972-21-0790-9.
Cortesia de Caminho/JDACT