quinta-feira, 6 de junho de 2013

Prosa. Terra Sonâmbula. Mia Couto. «Entram no autocarro. O corredor e os bancos estão ainda cobertos de corpos carbonizados. Muidinga se recusa a entrar. O velho avança pelo corredor, vai espreitando os cantos da viatura. - Estes arderam bem…»

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«O que faz andar a estrada? É, o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro». In Fala de Tuahir.

A Estrada Morta
«Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. A estrada que agora se abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância. Pelas bermas apodrecem carros incendiados, restos de pilhagens. Na savana em volta, apenas os embondeiros contemplam o mundo a desflorir.
Um velho e um miúdo vão seguindo pela estrada. Andam bambolentos como se caminhar fosse seu único serviço desde que nasceram. Vão para lá de nenhuma parte, dando o vindo por não ido, à espera do adiante. Fogem da guerra, dessa guerra que contaminara toda a sua terra. Vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo. Avançam descalços, suas vestes têm a mesma cor do caminho. O velho se chama Tuahir . É magro, parece ter perdido toda a substância. O jovem se chama Muidinga. Caminha à frente desde que saíra do campo de refugiados. Se nota nele um leve coxear, uma perna demorando mais que o passo. Vestígio da doença que, ainda há pouco, o arrastara quase até à morte. Quem o recolhera fora o velho Tuahir, quando todos outros o haviam abandonado.
O menino estava já sem estado, os ranhos lhe saiam não do nariz mas de toda a cabeça. O velho teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar. Muidinga se meninou outra vez. Esta segunda infância, porém, fora apressada pelos ditados da sobrevivência. Quando iniciaram a viagem já ele se acostumava de cantar, dando vaga e distraídas brincriações. No convívio com a solidão, porém, o canto acabou por migrar de si. Os dois caminheiros condiziam com a estrada, murchos e desesperançados. Muidinga e Tuahir param agora frente a um autocarro queimado. Discutem, discordando-se. O jovem lança o saco no chão, acordando poeira. O velho ralha: - Estou-lhe a dizer, miúdo: vamos instalar casa aqui mesmo. - Mas aqui? Num machimbombo (autocarro) todo incendiado? - Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder.
Muidinga não ganha convencimento. Olha a planície, tudo parece desmaiado. Naquele território, tão despido de brilho, ter razão é algo que já não dá vontade. Por isso ele não insiste. Roda à volta do machimbombo. O veículo se despistara, ficara meio atravessado na rodovia. A dianteira estava amassada de encontro a um imenso embondeiro. Muidinga se encosta ao tronco da árvore e pergunta: - Mas na estrada não é mais perigoso, Tuahir? Não é melhor esconder no mato? - Nada. Aqui podemos ver os passantes. Está-me compreender? - Você sempre sabe, Tuahir. - Não vale a pena queixar. Culpa é sua: não é você que quer procurar seus pais? – Quero. Mas na estrada quem passa são os bandos (designação popular de bandidos armados). - Os bandos se vierem, nós fingimos que estamos mortos. Faz conta falecemos junto com o machimbombo.
Entram no autocarro. O corredor e os bancos estão ainda cobertos de corpos carbonizados. Muidinga se recusa a entrar. O velho avança pelo corredor, vai espreitando os cantos da viatura. - Estes arderam bem. Veja como todos ficaram pequenitos. Parece o fogo gosta de nos ver crianças. Tuahir se instala no banco traseiro, onde o fogo não chegara. O miúdo continua receoso, hesitando entrar. O velho encoraja: - Venha, são mortos limpos pelas chamas».

In Mia Couto, Terra Sonâmbula, Editorial Caminho, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0790-9.

Cortesia de Caminho/JDACT