domingo, 2 de junho de 2013

Cister. Os Documentos Primitivos. Aires Nascimento. «O equilíbrio das necessidades materiais da comunidade com as suas disponibilidades de tempo e de receitas obrigava a outras decisões de não pequenas consequências. (…) o ingresso dos leigos nas actividades do mosteiro tornava-os conversos, com os direitos dos monges, embora com dispensa de participação no coro e na “lectio”»

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«(…) A situação não desagradava a Roberto, já que há indícios de que, por várias vezes, se terá mostrado apoiante de reformas: deve ter secundado os desejos dos monges de Vivicus, apesar da oposição de outros, que terão aproveitado a sua ausência para reclamar o regresso deles; era certamente por reconhecerem nele um guia espiritual de renovação que outros o haviam acompanhado no regresso de uma viagem à Flandres, dois dos que se incorporam no grupo que parte para Cister eram originários de Arras.

NOTA: Quatro monges de Molesme, entre os quais Alberico e Estêvão, fizerarm uma tentativa de reforma em Vivicus, mas foram obrigados a retirar por intervenção do bispo Roberto da Borgonha; os factos, referidos na Vita Roberti, não são claros, mas parece que a ida para o ermo foi realizado num momento em que o abade se encontrava ausente e os partidários de uma vida monástica mais rigorosa não aguentavam o ambiente de Molesme; o regresso foi imposto pelo bispo para evitar o escândalo que tal secessão representava para a abadia de Molesme e lembrar aos mais zelosos que nada se podia fazer sem o consentimento da autoridade eclesiástica, no caso, do bispo de Langres. Por dupla razão, os mesmos monges se dirigem dentro em pouco ao legado papal, o arcebispo de Lião, em momento favorável da passagem deste em visita à sua arquidiocese.
Da viagem à Flandres trouxe Estêvão um manuscrito precioso em que o calígrafo e iluminador Osberto representa os abades de Cister e de Saint Vaast ao lado da Virgem Maria, com o próprio Estêvão a fazer a oferenda de uma igreja. A oferta desse manuscrito, aliás, sela um pacto de fraternidade espiritual celebrado entre Arras e Cister.

Mas a iniciativa da partida não deve ter sido da responsabilidade de Roberto, pois as convicções não sofrem quebra quando Roberto, poucos meses decorridos, se vê forçado a regressar a Molesme, por intimação papal e sob reclamação dos monges daquele mosteiro, a que não devia faltar um líder capaz de exigir intervenções firmes da autoridade. Os destinos da nova abadia, oportunamente confirmada pela tomada de posse do abade, ficava nas mãos do antigo prior, Alberico, homem forte, homem dado às ciências divinas e conhecedor das experiências da vida, ardente em amor pela Regra e cheio de caridade pelos irmãos, como declara o Exordium Paruum. Fizera ele parte dos fundadores de Molesme, em 1075, depois certamente de uma vida de estudo e de piedade. Braço direito de Roberto, cabe-lhe levar por diante a reforma encetada; a ele pertence ter conseguido a aprovação papal para a iniciativa, no tempo de Pascoal II, ter-se libertado do pagamento de direitos senhoriais, e lançar a organização da vida cisterciense: o regresso à Regra implicava nada aceitar do que nela não estivesse consignado; rectificavam-se modos de vestir, regressava-se ao tecido natural e ao desenho mais simples da túnica singela, e de comer, desapareciam as carnes e as gorduras, como pobres, consagravam os monges a obrigação do trabalho pelas próprias mãos e não admitiam rendimentos de outra procedência, pelo que renunciavam a direitos sobre igrejas, fornos, moinhos, mas também a priorados e recolha de dízimas; por isso tornava-se necessário equilibrar os momentos de oração com os de trabalho e de leitura, pelo que o regresso a uma liturgia mais simples recuperava tempos destinados a outras ocupações; restaurava-se a obrigação do silêncio e da clausura estrita, nem os leigos podiam ultrapassar a porta do mosteiro nem o monge podia pernoitar fora dele.
O equilíbrio das necessidades materiais da comunidade com as suas disponibilidades de tempo e de receitas obrigava a outras decisões de não pequenas consequências: o emprego de assalariados convertia os servos em pessoas livres com trabalho fixo; o ingresso dos leigos nas actividades do mosteiro tornava-os conversos, com todos os direitos dos monges, embora com dispensa de participação no coro e na lectio.

Por morte de Alberico em 26 de Janeiro de 1108, é Estêvão Harding quem é escolhido, estando ele ausente, fazem notar as fontes, para ocupar o seu lugar. Erudito e homem de acção, pertence-lhe ter transposto para a Carta de caridade e unanimidade o que certamente se vinha organizando com Roberto e com Alberico, acrescentando-lhe ele uma experiência de longos anos, começada em Inglaterra e dilatada por contactos diversos. A ele se deve atribuir a organização do scriptoritum cisterciense onde fixava
os textos de uma reforma que se propunha ter instrumentos uniformes em todas as abadias. A ele pertence sobretudo ter planeado a difusão da reforma cisterciense, em movimento de expansão bem ao invés de quanto pretendia Molesme, ainda antes de o próprio Bernardo ter ingressado em Cister. La Ferté data do ano em que Bernardo chega ao mosteiro e por isso há que supô-la já planeada. A ele há que reconhecer a capacidade de conviver com gerações diversas, sem se molestar com o fervor eventualmente mais intempestivo de alguns mais radicais, no caso da iluminura, por exemplo, não esquece a lição do antigo mosteiro inglês, muito embora não estranhe as reacções de Bernardo na procura de uma simplicidade que dispensa o ornato excedentário, servindo certamente de moderador em diversas circunstâncias.
A decisão de fundar novas abadias e não priorados envolve uma perspectiva do múnus do abade que deve acompanhar os seus monges, com a assistência reclamada na Regra (a decisão papal de proibir a elevação a abadias as celas ou os priorados é de 1100 e pretende evitar a dispersão. Os cistercienses devem ter obtido autorização anteriormente a esta medida romana). Implica, por outra parte, a definição de relações entre abadias». In Aires Nascimento, Cister, Introdução, tradução e notas, Edições Colibri, Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, ISBN 972-772-032-3.

Cortesia de Colibri/JDACT