sábado, 8 de junho de 2013

História e Mito. Madalena. Helena Barbas. «No teatro Madalena é reconduzida ao seu esplendor gnóstico por Armando Nascimento Rosa. Encontra uma actualização verdadeiramente inédita do seu mito no romance de Rui Zink. Em 2007 estreia-se a versão portuguesa de Jesus Cristo SuperStar…»

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Introdução
«(…) Pelo século XVI dá-se uma grande transformação na abordagem e representações de Madalena, principalmente em consequência das Reforma e Contra-Reforma, concentradas nas propostas do Concílio de Trento. Rebenta também neste momento a grande querela francesa sobre os enigmas da identidade da(s) Maria(s) evangélica(s). Em Itália é escrita uma nova versão da lenda, a Rosa Aurea, que vai tentar desligar Madalena da vida de Cristo, censurar e rasurar todos os momentos em que entram em diálogo, inclusive os presentes nos textos canónicos. É também neste texto que Madalena passa a estar associada ao Graal. A partir de todas estas contribuições torna-se possível delinear uma biografia imaginária de Maria Madalena, conjugando todos os episódios e todas cenas que os séculos lhe foram atribuindo, já que o próprio das lendas é absorver em si todos os esforços, tanto os de acrescentamento quanto os de rasura, engordar e enriquecer-se à conta deles. Destas caracterizações exteriores e psicologizantes começa a delinear-se uma identidade, e uma individualidade para a personagem. A partir do literário, vários autores tentam submeter Madalena ao ideário pretarquizante do tempo. Têm que se confrontar com as decisões saídas de Trento e obedecer aos decretos.
O amor de Madalena é reconduzido ao profano, a sua imagem começa a invocar metáforas nacionais, torna-se Leonor. Enquanto mito amoroso começa a aproximar-se da figura de Inês de Casto. Em termos internacionais a ópera italiana recupera a castelã medieval. Exibe uma personagem algo libertina que nos chega por via das traduções. O esforço francês para criar uma epopeia magdaleniana tem eco em dois poemas nacionais directamente inspirados por Camões. Provam estes que, literária e pictoricamente, o problema da identidade de Madalena fica resolvido desde os primórdios. O seu peso como figura, as acções e gestos que lhe são atribuídos, exigem que seja uma única personagem. Só assim pode transformar-se, inclusive, em heroína épica da demanda amorosa, uma nova Inês. Um outro caminho que reforça a recondução ao profano é o seguido pela literatura edificante que procura domar Madalena tornando-a doméstica. Tudo isto a desaguar nas paródias à personagem e seus gestos:
  • Madalena torna-se lavadeira, Leonor a caminhar descalça pela calçada.
Nos países protestantes, após a Reforma, Madalena devém símbolo da distância entre o homem e Deus. Desce até ao Sul representada como figuração da Melancolia. Uma herdeira da acédia, a exibição do sofrimento causado pela influência astrológica do planeta Saturno, vai transformar-se no mal-de-vivre e no spleen. O espelho é o das vaidades e o crânio um espelho funesto. Madalena converte-se na cortesã francesa ou pré-rafaelita. Mantém a qualificação que quase nunca a abandona, a prostituta. Carregada agora com a doença da melancolia é fácil aos nossos autores simbolistas recuperarem-na, junto com Salomé, como exemplo da figura das mulheres fatais.
Madalena fica posta em sossego durante as duas Grandes Guerras. É resgatada pelo revivalismo hippy dos anos de 1960, pelos novos feminismos, como exemplo de um poder matriarcal perdido e recuperável. Regressa em 1970 como Superstar, diva na ópera-rock e no cinema. Já no século XXI há um segundo surto desencadeado pelo polémico best-seller mundial, o Código Da Vinci, 2003, que sobre ela dirigiu os olhos do mundo. As lendas são recuperadas e deturpadas, Madalena é associada ao Graal e aos Templários. Rebenta a quarta querela da identidade com as pseudo-descobertas de novas relíquias e interessantes consequências científicas.
Em Portugal, caminha da lenda a uma reformulação do mito. Surge na pintura de Paula Rego que lhe chama Bruxa Branca e exibe-se como eremita mística em Barahona Possolo. No teatro vão ainda ecoar as paródias, surgindo negra e pulverizada. No geral encontramos a reescrita de ecos antigos também na poesia. Na prosa, José Saramago transforma-a numa nova Diotima. Já no século XXI, por interferência das novas importações surge-nos um ensaio. No teatro Madalena é reconduzida ao seu esplendor gnóstico por Armando Nascimento Rosa; encontra uma actualização verdadeiramente inédita do seu mito no romance de Rui Zink. Em 2007 estreia-se a versão portuguesa de Jesus Cristo SuperStar. Em todos os momentos irão ser dados exemplos da sua representação literária e pictórica e dos modos como foi sendo recebida em Portugal, na Península. Madalena chega-nos por importação, de França, de Itália por via de Espanha. Far-se-á, pois, uma pequena resenha das grandes diferenças que por tal apresenta relativamente às tradições estrangeiras. Maria de Magdalo é uma figura do nosso património colectivo, exibe as marcas das mudanças e evolução dos modos de pensamento e filosofias, da história psicológica do Ocidente, pertence ao campo da História das Ideias, exige uma abordagem Comparatista.
Enquanto mito, desempenha uma função no mínimo terapêutica, e não deverá ser tratada de ânimo leve. Diz-nos Jung que, quando há coincidência em testemunhos vindos de origens diversas, quando o tema renasce após séculos de aparente desgaste, é prova que se pode estar em presença de um Arquétipo. Assim, o tema de Madalena pertencerá ao depósito das imagens proto-arcaicas do inconsciente colectivo cuja manifestação, e leitura, relevam da ordem da linguagem do sonho e/ou do sagrado». In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT