sexta-feira, 7 de junho de 2013

Madalena. História e Mito. Helena Barbas. «Na vertente profana alimentou autos e dramas na Idade Média. Na vertente mística foi alimentada pelas reflexões dos Padres da Igreja, pelos comentários de Hipólito e Orígenes ao ‘Cântico dos Cânticos’ de Salomão que a relacionam com a Sulamita»

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Introdução
«Primeiro que tudo é preciso esclarecer que a Verdade sobre Maria Madalena é que não há verdade nenhuma. Todos os mistérios com que os romances mais recentes pretendem envolver a figura são o segredo da mera ignorância dos seus autores, ou da exploração da total ausência de factos e artefactos históricos. Em 1988, quando fiz a tese sobre Maria Madalena na Literatura e artes portuguesas, (FCSH – UNL), terminei com uma frase que me surgiu arrogante e subitamente se tornou vaticinadora. Que a figura de Madalena preenchia as necessidades psicológicas típicas de um mito, que talvez estivesse a começar a encontrar o seu momento de efectivação. E assim parece estar a acontecer. Mas os mitos também nascem, crescem e morrem. E porque o nosso tempo é de velocidades, o auge da recuperação presente de Madalena pode também corresponder ao princípio do seu fim, pelas tentativas de atribuir uma consistência física e real a uma entidade que só funcionará fora delas.
O mito, feito a partir da história, desembaraça-se dela. Sobrevive e alimenta-se da capacidade de significação infinita dos símbolos profundos a que recorre para se manifestar. Quando se procura explicá-lo, ou circunscrevê-lo a eventos concretos, está-se a cortar-lhe as asas, a reduzi-lo, a forçá-lo a regressar à tal história da qual se libertou. Quando se tenta reencaixar a figura de Maria Madalena no contexto de onde terá saído, atribuir-lhe um corpo, um bilhete de identidade, uma relação familiar concreta, uma descendência, está a matar-se o mito e a empobrecer a figura. Ficamos, pois, também todos nós mais pobres.
Assim, o objectivo deste livro não é explicar quem foi de facto Maria Madalena há dois mil anos, mas tentar perceber e mostrar como, durante dois mil anos, um nome de uma figura que nem sequer se sabe se existiu foi, sucessivamente, atraindo a si acontecimentos e narrativas que levaram à criação, primeiro de uma lenda, depois de uma biografia imaginária. Essa biografia é resultado das várias leituras da personagem que foram sendo feitas ao longo dos séculos por centenas de escritores e artistas plásticos, dedicados às práticas sagradas e profanas. A partir de textos abrigados pelas tradições portuguesa e espanhola, detectar quais os modos particulares que reveste a figuração e o mito ibéricos de Maria Madalena.
O momento primeiro em que o nome de Maria de Magdalo nos aparece é nos Evangelhos. Referida no texto tido por sagrado que inspirou e inspira religiões e seitas, foi vasto o seu público e ficou garantida a sua permanência. Olharemos para esses livros como meras narrativas literárias, parte das proto-histórias das quais o mito se libertou.
No Novo Testamento, no romance de Jesus Cristo, Maria aparece como uma pecadora convertida que segue Jesus até casa de Simão, lhe unge os pés e os limpa com seus belos e longos cabelos. É também a primeira testemunha da Ressurreição, sozinha, ou na companhia de outras mulheres. E acaba por tornar-se suficientemente fascinante para se autonomizar face aos outros actores do drama evangélico. Também não se pode esquecer que Madalena aparece referida noutras obras, como os Evangelhos Apócrifos que sempre tão bem a trataram e que nos Evangelhos Gnósticos se encontra um atribuído a Maria.
A si vai chamar também episódios da vida de outras mulheres além das que seguem o rasto de Cristo. Encontram-se outros vestígios mais antigos, arcaicos, que deixaram igualmente a marca de um gesto insólito em narrativas judaicas. Veremos o que Madalena herda através de algumas das mais célebres cenas e mulheres da Bíblia e os seus comentários. A sua grandeza e fama, porém, Maria deve-as a Jesus Cristo. Os vários tipos possíveis de relacionamento entre ambos estão actualmente a sustentar muita literatura espúria. A hipótese de uma relação amorosa entre Madalena e Jesus não é novidade:
  • na vertente profana alimentou autos e dramas na Idade Média; 
  • na vertente mística foi alimentada pelas reflexões dos Padres da Igreja, pelos comentários de Hipólito e Orígenes ao Cântico dos Cânticos de Salomão que a relacionam com a Sulamita.
É a partir destas referências que se vão elaborar as primeiras lendas, resumidas e condensadas na Legenda Aurea de Jacopo da Varazze, e se consolidam os elementos base para a construção do que se entende ser a Vita de Madalena. Aqui se incluem a polémica medieval sobre as relíquias, bem como a aceitação da sua viagem até Marselha, os modos da apropriação da Santa e dos seus restos mortais por via francesa. Madalena gálica vai ser aceite também em Portugal logo desde o Flos Sanctorum publicado em 1513, um manual das vidas e milagres dos santos em português vernáculo, traduzido do castelhano, para ser usado pelos pregadores nos seus sermões. Veremos como as narrativas interagem com a pintura, o teatro e a poesia». In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT