Tibete, o último destino dos Descobrimentos?
«Os textos que se seguem
relatam a descoberta do Tibete pelos europeus. É certo que o mundo
ocidental já dispunha de informações mais ou menos falsas sobre o mais
misterioso país da Ásia, antes da viagem e estabelecimento de António Andrade
e outros jesuítas portugueses no reino de Gu-ge (Tibete Ocidental) e também no de Utsang (Tibete Central), no início do
século XVII. Já tinham ocorrido encontros acidentais entre lamas e membros
da Igreja romana, como o descrito por Guillaume de Rubrouck, em 1253-1254.
Mas nunca nenhum viajante vindo da Europa tinha atravessado os colos dos
Himalaias ou posto os pés no Tecto do Mundo . O mesmo não
acontecia com os mercadores ou peregrinos chineses, indianos ou muçulmanos que
foram, aliás, os percursores das duas equipas de portugueses particularmente
destemidos que se lançaram ao assalto da Terra
das Neves, a primeira a partir de Agrã e da corte do Grande
Mogol, e a segunda a partir de Bengala.
A epopeia marítima de
Portugal inspirou uma obra incomparável na Literatura dos tempos modernos, Os Lusíadas, de Luís de Camões. Esta
obra, a única epopeia verdadeiramente conseguida nesta época, recordemos La Franciade, de Ronsard…, teria sido
impossível sem a existência de uma ampla literatura portuguesa da navegação e
descoberta marítima. Ela confirma a ideia de uma nação portuguesa feita de
marinheiros ou inseparável da água salgada. Mas ignora-se com frequência que
estes Argonautas também
abandonaram os seus navios, embrenhando-se nas massas continentais, a pé, a
cavalo e até de camelo. O Brasil por um lado e, por outro, a exploração dos
corações quentes ou gelados da Ásia, da China continental e sobretudo dos
grandes espaços muçulmanos ou submetidos ao islão, Império otomano, Irão
safévida, Afeganistão e Índia do Grande Mogol, provam que os portugueses não
recearam afastar-se dos mares. À excepção de minúsculos espaços insulares ou
costeiros, não houve conquista nem bandeirantes
no Oriente. A audácia lusitana nas terras muçulmanas da Ásia e particularmente
no Tibete,
apenas acessível a partir da Índia dominada pelo islão, talvez não tenha sido
menor que a demonstrada nas vagas.
No entanto, ela não
inspirou epopeias: não podiam existir duas, uma para o mar e outra para a
terra, sendo a segunda o prolongamento da primeira. Mas os homens cujas
explorações este livro descreve tinham consciência de nela participarem, como Francisco
Azevedo, em 1630, e em plenos Himalaias,
recordando de súbito Camões, o nosso poeta, e particularmente um
verso de Os Lusíadas que evoca a
clara nascente do Ganges, onde se supõe que os habitantes vivem do
perfume das flores que brotam
dessa nascente. A estada
de um punhado de jesuítas portugueses no Tibete, de 1624 a 1635, prosseguida
esporadicamente até 1640, e cujas
obras foram retomadas em 1715 por Ippolito
Desideri, inscreve-se num duplo contexto: o do Extremo-Oriente, onde a ordem fundada por Inácio de Loiola
tentou asiatizar o cristianismo (Matteo Ricci, Roberto de Nobili), e o
do mundo muçulmano, onde ela estava também empenhada: no Médio-Oriente das minorias cristãs mais ou menos afastadas da
comunhão com Roma, do Líbano à Abissínia e à Índia do Norte (ou Grande
Mogol), onde diversas circunstâncias excepcionais, devidas essencialmente às
ambições político-religiosas de Akbar (1542-1605), permitiram um
diálogo islâmico-cristão pouco usual e singular.
Embora não contenham
informações significativamente falsas, estes textos apresentam distorções por
vezes espantosas relativamente à ideia do
budismo lamaico que nos dão, hoje em dia, as obras modernas. O nome de
Chescamoni, Sakyamuni,
apareceu pela primeira vez em 1627,
sob a pena de Estêvão Cacela, um padre pertencente à província jesuíta
de Cochim (e não à de Goa), e livre da autoridade ou influência de Andrade
pois residia em Utsang, no Tibete central, e não no Gu-ge.
Foi a incapacidade ou a recusa de ver Buda
e o budismo na terra dos lamas que impediu o primeiro visitante europeu
do Tibete
de se tornar o fundador da tibetologia
moderna. Mais do que a Cacela ou Cabral, afinal mais lúcidos
em Utsang do que os padres de Tsaparang no Gu-ge, o mérito de ter
fundado esta ciência coube ao jesuíta italiano Ippolito Desideri (1684-1733).
Estes textos, interessantes, vivos, coloridos e cheios de detalhes concretos, acabam
por ser mais impressionistas que realistas. Situados a montante da tibetologia moderna, fazem corpo com o
imaginário, a lenda, ou melhor, as lendas cristãs e muçulmanas acerca do Tibete,
solidárias para fazerem do Buda e do
budismo um ponto cego, ou seja, uma
alteração paganizante do seu próprio monoteísmo, uma deformação de si próprio.
O Tibete visitado em 1624-1641
é, em sentido próprio e figurado, o ponto mais alto da exploração do mundo
pelos portugueses. Estes tinham convivido bastante com os muçulmanos em Ceuta,
em Moçambique, em Melinde e nas costas do Oceano Índico, de Ormuz às Malucas,
por terem em todo o lado procurado o que, na sua opinião, o islão escondia e
não permitia atingir: além das especiarias, cristandades perdidas, isoladas,
exóticas, como se pode inferir das palavras de Vasco da Gama: Vimos
buscar cristãos e especiarias. Na
origem de todas estas expedições, primeiro marítimas e depois terrestres, esteve
sempre o mesmo desejo, quase sempre e por todo o lado frustrado mas sempre
renascido, de encontrar longe, no sudeste, no nordeste ou a leste do mundo
muçulmano, uma espécie de duplo exótico da cristandade latina.
Andrade gostaria,
tal como no início acreditou, que os tibetanos fossem cristãos, como uma parte
dos indianos de Malabar, os abissínios
ou os arménios. Como pensara Góis alguns anos antes, ao atravessar
o reino de Kasgar (Xinjiang).
E também Cacela e Cabral procuraram na Ásia central, e
nomeadamente no Tibete, onze anos depois do fracasso
de Góis, o caminho para o Cataio, identificado desta vez como
o Shambala (Sam bha lai) dos
relatos dos lamas.
O imaginário europeu e o
imaginário tibetano também se misturavam. Parece que só o sonho podia engendrar
o dinamismo psicológico necessário ao estudo de realidades longínquas ou pouco
acessíveis. Mas uma vez atingidas estas, depois de desbravados os furores dos
oceanos ou as encostas geladas dos Himalaias, o sonho tinha que debater-se
ferozmente contra a decepção. Tinham que existir restos de cristianismo na
seita dos lamas, ou então o Cataio continuava ainda por
descobrir, para lá das montanhas e dos desertos da Ásia». In Hugues Didier, Les Portugais
au Tivet. Les premières relations jésuites (1624-1635), Editions Chandeigne,
1996, Os Portugueses no Tibete, Os Primeiros Relatos dos Jesuítas (1624-1635), Coordenação
da edição portuguesa por Paulo Lopes Matos, Tradução de Lourdes Júdice, Colecção
Outras Margens, CNCDP, 2000, ISBN: 972-8325-82-7.
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