domingo, 10 de novembro de 2013

A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal. Pedro Calafate. «O convite à inserção do homem/mulher no mundo e na natureza não determina, pois, a dissolução da natureza humana num plano inferior, mas, bem pelo contrário, a sai dignificação e elevação»

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Ciência e Religião. Natureza e Símbolo
«A ideia segundo a qual a natureza se opõe à religião, como o progresso ao obscurantismo, foi uma das mais expressivas consequências do positivismo oitocentista, de algum modo reforçada por uma filosofia da história unilinear e universalizante, que nos propunha uma imagem dos grandes períodos de progresso, cultural e social como momentos de irreligiosidade ou, pelo menos, de crítica destrutiva da tradicionalidade do pensamento religioso e dos seus dogmas. Cabe, no entanto, referir que a formulação do problema nestes termos não deixa de comportar alguns equívocos, dado que o triunfo da natureza, não implicou, por si só, e necessariamente, a irreligiosidade ou qualquer cisão com a ideia fundamental de sobrenatural, a qual depende, afinal, da constituição expressa de uma ideia de natureza. Importa, assim, acentuar que contra a ideologia positivista, uma das mais interessantes contribuições das ciências sociais do nosso século consistiu na superação dos limites do pensamento conceptualista, no âmbito de uma compreensão global e mais ampla do humano. Passa por aí a reintrodução, no nosso universo mental, do simbólico, ocultado por três séculos de racionalismo, que privilegiaram os modos de expressão conceptual.
Temos vindo a assistir à chamada de atenção para o papel fundamental do símbolo, nomeadamente para sua peculiar e insubstituível função de transfiguração da realidade concreta, em ordem a fornecer, ao conjunto de indivíduos que o reconhecem, uma linguagem particular, religando cada ser a uma comunidade de significado mais vasto, seja ele sociopolítico ou essencialmente espiritual. Reconhece-se, assim, que a função simbólica, de que os grandes sistemas religiosos foram, em boa medida, os principais depositários, nos fornece uma linguagem própria, funcionando não apenas horizontalmente, na relação de cada indivíduo com a comunidade em que se sente integrado, mas também verticalmente, na definição das suas relações com o divino, descortinando-se, em qualquer dos casos, a presença inelutável do sentido. Como recentemente reconheceu, em obra já clássica, Gilbert Durand, a galáxia do imaginário, transformou-se naquilo que se poderia designar como o céu epistemológico que se levanta na aurora deste final de século, mediante uma revisão profunda da noção newtoniana de causalidade e do seu suporte espaço temporal.
Assim, o imaginário é-nos ai apresentado como uma função geral do equilíbrio antropológico, determinando a remoção da tese positivista que à luz da lei dos três estádios, nele apenas via um modo primitivo de conhecimento que importaria, então, superar, por justos motivos. Esta tese cristalizará, como é sabido, num contexto histórico de primazia do cientismo, que afuma como valores supremos a ciência físico-química, imperante até ao início do século XIX. À luz desta perspectiva antropológica contemporânea,teremos pois de recusar a secundarização do símbolo, por isso que nem a psicologia da criança, nem a psicologia do homem primitivo, nem a análise do processo de formação da imagem no adulto civilizado permitem afirmar que o símbolo seja secundário em relação à linguagem conceptual. O símbolo continua a desempenhar uma função essencial em todas as sociedades, desde as consideradas primitivas, às mais evoluídas. A sua função permanece 1nvariável: a de transformar um objecto ou um acto em algo diferente daquilo em que estes são tidos na experiência quotidiana. Nada permite, pois, concluir que o sentido próprio, tem primazia, tanto cronológica como ontologicamente, sobre o sentido figurado. Neste sentido, o culto da objectividade, mediante a secundarização do simbólico, aparece ligado a uma Weltanschauung que confere a primazia ao em si objectivo, em detrimento do para si, subjectivo. Ora, o ideal de uma inteligibilidade radical, estabelecendo a transparência do mundo ao pensamento, encontra um inelutável limite na própria estrutura do espírito humano. É isto que determina que, como diz Durand, todo o sistema de razões transporte sempre consigo os seus próprios fantasmas, sem se desembaraçar, por isso, de um constante halo imaginário». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.

Cortesia INCM/JDACT