«O coche passava, a casa ficava
adormecida entre as árvores; através dos vidros embaciados, eu via ao longe a
estrela de Vénus». In A Relíquia
Eros e Eça
«(…) Nietzsche viu no amor que São Paulo exalta nas suas Epístolas a transmutação de todos os valores
antigos. E com razão, pois essa ideia nova do amor subvertia a ideia
grega de eros, aspiração e
fascínio natural por tudo o que é belo. Do amor às coisas sensíveis se passa,
pela própria natureza do Desejo de possuir um objecto que anule a indigência de
que nasceu, segundo Platão, a graus de perfeição cada vez mais altos para
atingir, por fim, o supremo Bem. A essência do amor pauliniano, mera extrapolação
do exemplo dado por um deus crucificado, humilhado, imagem mesma do abaixamento
humano, é oposta à do eros que sobe pelas suas próprias forças e já
semideus, se autodiviniza completamente. Ao amor que ascende, ao eros
grego, contrapõe-se o amor que desce, que não é uma força mas uma fraqueza no
qual o ser humano é menos amante que amado. Sobretudo, não é amor do Alto ou só
é do alto por ser do próximo. Toda a
história espiritual do Ocidente se pode resumir no conflito entre estas duas
versões do amor, que, para retomar o título célebre d'Andres Nygren,
opõem Eros a Ágape. Apesar do abismo que as
separa, estas duas formas não deixaram de se contaminar uma à outra e provavelmente
a sua contaminação nunca foi mais intensa do que hoje, embora a erotização
quase absoluta do imaginário contemporâneo só pareça deixar lugar ao Eros cada vez mais grego, mesmo
na sua expressão literal.
A própria expressão unívoca de amor
induzia essa confusão que conheceu a sua apoteose no que chamamos Renascimento,
esse Renascimento que na sua explosão sensual tanto entusiasmou o jovem
Eça, a ponto de o trocar pela romântica e mais cristã Idade Média,
antes de voltar a ela resignado, mas não convencido, em fim de vida. Na realidade,
o Renascimento não foi essa apoteose erótica, em sentido moderno, esse
triunfo de Eros sobre Ágape que o nosso primeiro autor realmente erótico
imaginou. Foi antes o momento de imaginário equilíbrio entre os dois
amores, o amor profano e o amor divino tais como Ticiano os representou,
oferecendo no quadro com esse título o retrato da mesma mulher sumptuosa em
versão nua e em versão vestida. Escusado dizer que este equilíbrio é fictício e
que nele circula o eros na sua
mais refinada expressão. Só ficava para o amor divino a tentação de ocupar o
lugar do seu antagonista, de se erotizar
sensualizando as relações do homem com Deus, em suma, passando da expressão
renascentista à expressão barroca.
Sob o álibi divino nunca a cultura do Ocidente cristão conhecera
semelhante erotização e tanto mais intensa quanto maior era a inocência de
estado dessa cultura, como foi o caso da cultura ibérica e, em particular da
nossa, que desconhecera o naturalismo,
senão o naturismo, do autêntico Renascimento. Enquanto corpo imaginário, o corpo real das
nossas místicas e dos nossos místicos, pois a ficção profana não participa
nesse jogo, experimenta e detalha todos
os suspiros, os êxtases, as delícias e os delírios mais obviamente sensuais que
se podem imaginar. Como a essência do Desejo é, da ordem do fantasma, podemos
sem paradoxo, como o fez em tempos o meu mestre Sílvio de Lima, ver
nesses amores santos a
apoteose do erotismo. Nem o nosso romantismo, nem sobretudo Eça
de Queirós, troçando e retomando-a noutro diapasão, esquecerão a
linguagem, a audácia que a familiaridade do corpo
imaginário com o objecto divino suscitavam, quando chegar o momento de ficcionar
o objecto do desejo como realíssima carne. Pela lógica do nosso imaginário,
essa conversão tinha de ser cumprida sob o modo da profanação, do sacrilégio, deslocando o signo transcendente da sua
função, mas guardando a forma.
É o que Eça de Queirós leva a cabo em cenas famosas, de estrutura
obsessiva, para assinalar ao mesmo tempo a vertigem erótica em estado puro e a
inanidade da palavra para a exprimir. Ninguém pode esquecer a célebre cena do Crime em que Amaro reveste Amélia do
manto de Nossa Senhora depois de a possuir. É sobejamente conhecido que nenhum
momento erótico de conotação ficcional forte dispensa um cenário sacralizado.
Como se a cruz desenhada no seu quarto de estudante boémio, baudelairianamente
suspenso da dupla postulação em
relação a Deus a Satã tivesse ficado nele como uma recordação, ou
antes, uma marca indelével. E na verdade ficou, e é por isso que o erotismo
queirosiano releva de uma trama, senão metafísica, pelo menos dramática,
através da qual se retomam todos os fios do combate espiritual que tem Eros e Cristo como referente. Nem ele o esconde, pois largamente o
explana através de Amaro, em páginas sobre a Carne, o Diabo e o Mundo. A sua
obra oferecerá ao leitor, complacentemente, o espectáculo desse conflito» . In
Eduardo Lourenço, As Saiasde Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006,
ISBN 989-616-151-8.
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