Imortais sabem, uns dos outros, os nomes, os feitos e os rostos soberanos,
mesmo quando habitam retiros remotos que o Éter e o Mar separam. In Eça
de Queirós. A Perfeição
«Que espécie de relação
poder-se-ia estabelecer entre dois contemporâneos como Eça de Queirós e Machado de Assis? É comum considerar um em
relação ao outro somente em função da crítica que Machado de Assis publicou
no jornal carioca O Cruzeiro, nas edições de 16 e 30 de Abril de 1878. Como sabemos, o escritor
brasileiro
analisou, sob o
pseudónimo de Eleazar, dois
romances de Eça de Queirós, O primo Basílio e O crime do padre
Amaro, sendo este texto (em sua segunda versão, de 1876) considerado uma
imitação de La Faute de l’Abbe Mouret. Seria isto suficiente para criarum
abismo entre duas referências de
mentalidade e de gosto da língua portuguesa? Pelo contrário.
Não obstante a crítica, Eça
de Queirós não só escreveu sobre o Brasil como escreveu para leitores
brasileiros, especialmente em colaboração com a Gazeta de Notícias, do
Rio de Janeiro, com a Revista Moderna e com a Revista de Portugal,
em Paris, sendo importante ressaltar nessa ligação o facto de ele ter
conquistado, no mesmo espaço cultural brasileiro em que despontou Machado
de Assis, a fidelidade de muitos leitores. Como explicar esta possibilidade de aproximação entre eles?
Julgamos que, pelo menos em parte, porque ambos foram jornalistas ao final do
século XIX, e porque enquanto cronistas partilharam análogas preocupações. Mas,
afinal, o que proferia a tão conhecida
crítica de Machado de Assis? Em primeiro lugar, cabe esclarecer que
Machado não fala propriamente em plágio. No estudo que serve de introdução a
edição crítica do livro O crime do padre Amaro está claro que Machado
utiliza um conceito mais cauteloso, amortecido por expressões como imitação e reminiscências e que o aproveitamento do texto de Zola está
restrito à descrição técnica da liturgia católica. Tal estudo reforça ainda as
teorias desenvolvidas por Alberto Machado Rosa na obra Eça, discípulo
de Machado?
Segundo o estudo
elaborado por Rosa, a originalidade da análise machadiana incidiria num sistema de ideias em que se fundia
uma visão aparentemente pragmática dos movimentos romântico e naturalista com
uma penetração excepcional dos fenómenos psicológicos e de verdade moral.
Conduzidos por Rosa, constatamos que Eça reconheceu que deveria seguir os
conselhos e sugestões de Machado de Assis. Ou seja, ao reescrever o romance O
crime do padre Amaro, Eça obedece a cada uma das observações do crítico brasileiro.
É assim que Machado Rosa conclui que se
a influência de Machado de Assis é mais que uma hipótese […] simboliza a
fecundação do mais luminoso artista de Portugal pelo mais profundo espírito do
Brasil, e a união das duas pátrias. Apesar de o tema ter sido
amplamente analisado no estudo de Alberto Machado Rosa, pensamos que cabe ainda
assinalar o seguinte: logo no início da sua crítica, Machado de Assis destaca
que já conhecia Eça de Queirós através d’As Farpas. Recordemos, então,
resumidamente o que ficou registado na revista As Farpas de Fevereiro de
1872, elaborada por Eça de Queirós e
Ramalho Ortigão. O texto, em tom de brincadeira, faz uma grande galhofa com o
imperador Pedro II que efectuou uma visita a Portugal e causou uma grande
estranheza. Mas, As Farpas não foram irónicas apenas com o Imperador do
Brasil e, consequentemente, com a Casa de Bragança (que estava no poder em
Portugal). O discurso queirosiano das Farpas fala também sobre o brasileiro
de forma mordaz: tudo no brasileiro é motivo de sátira, desde o seu aspecto físico
até a sua linguagem. Estaria Machado
de Assis magoado com a feroz crítica que Eça escreveu sobre os brasileiros? A crítica machadiana
seria uma forma de afirmar que no Brasil existia alguém capaz de pensar e estar
atento ao que acontecia na Europa em termos
de literatura e jornalismo?
Um outro facto que une
os dois mestres lusófonos diz respeito aos direitos autorais do livro O
primo Basílio. Na verdade, tudo se resume a uma declaração que surgiu em 1878, na segunda edição do livro, que
delegava para todos os efeitos da lei a propriedade literária da obra, no
Império do Brasil, ao escritor Machado de Assis. Machado Rosa acredita que
poderia ter sido o próprio Eça de Queirós quem sugeriu o nome de Machado, o que
demonstraria que Eça não guardou ressentimento contra a crítica elaborada pelo bruxo do Cosme Velho. Inegável é
o testemunho deixado por Machado de Assis na altura da morte de Eça de Queirós,
onde o escritor brasileiro, após enaltecer o escritor português, destaca que
conhecia a crítica e as polémicas suscitadas pelos controversos artigos
jornalísticos queirosianos:
Que hei de eu dizer que
valha esta calamidade? Para os romancistas é como se perdêssemos o melhor da
família, o mais esbelto e o mais válido. […] Tal que começou pela estranheza
acabou pela admiração. Os mesmos que ele haverá ferido, quando exercia a
crítica directa e quotidiana, perdoaram-lhe o mal da dor pelo mel da língua,
pelas novas graças que lhe deu, pelas tradições velhas que conservou, e mais a
força que as uniu umas e outras, como só as une a grande arte.
Ao enfatizar as críticas
queirosianas, ao conceder-lhe o perdão, estaria Machado a fazer uma referência
directa a crónica sobre os brasileiros publicada n’As Farpas? Apesar das
interrogações, nesta carta machadiana dá-se a feliz circunstância da absolvição
por parte do brasileiro. No entanto, como assinalou Beatriz Berrini, o
que importa destacar é que os dois escreveram para o mesmo jornal, a Gazeta
de Notícias, do Rio de Janeiro, na mesma altura (entre 1881 e 1897) e que tal
facto permite inferir que os textos de
um foram certamente lidos pelo outro. Heitor Lyra certifica que
Eça possuía, pelo menos, na sua biblioteca um livro (Quincas Borba) enviado por Machado de Assis, cuja
dedicatória sintetiza alguma frieza: A
Eça de Queirós, Machado de Assis. (1965). Mais uma prova de que os dois
grandes vultos da literatura oitocentista lusófona olharam-se de frente e partilharam
preocupações comuns. Tanto Eça como Machado seguiram caminhos paralelos:
enquanto Eça criticava a decadência da sociedade portuguesa; Machado de Assis
procurava a identidade da nova nação brasileira. Lúcia Miguel Pereira,
em 1945, comparou os ficcionistas: A visão directa e objectiva no português
passava, no brasileiro, pelo ângulo de refracção da subjectividade (1945).
Uma outra observação que
comprova uma certa sintonia entre os dois grandes vultos da língua portuguesa é
o facto de Eça de Queirós ter sido admitido na Academia Brasileira de Letras (fundada
por Machado de Assis) como sócio-correspondente, em 1887. Por seu lado, em 1904,
quando Machado de Assis se tornou sócio correspondente da Academia de Ciências
de Portugal, Eça de Queirós já tinha falecido. Um aspecto final indicador desta
cumplicidade entre os dois autores é o diálogo que propõe o livro da escritora Maria
Velho Costa, Madame, de 1999.
O texto é fruto de um projecto cénico que reuniu em palco duas grandes
actrizes: a portuguesa Eunice Muñoz e a brasileira Eva Wilma. Em cena, as
actrizes representam duas personagens femininas imortais e emblemáticas:
- Capitu eterna oblíqua, dissimulada, com olhos de ressaca e uma arara do Paraíso machadiano;
- Maria Eduarda, belíssima, inteligente, sublime, requintada como um pavão do reino dos Maias.
É um texto que funciona
pelo jogo intertextual e que revela, ainda hoje, a vitalidade do diálogo intercultural
luso-brasileiro». In Adriana Mello Guimarães, Diálogo de Titãs. Eça de Queirós e Machado
de Assis, Universidade de Évora, Revista
Labirintos, Universidade Federal de Feira de Santana.
A amizade de Adriana e Telma
Cortesia da UÉvora/JDACT