sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O Pensamento Filosófico de Antero de Quental. Leonardo Coimbra. «... uma sensação é uma modificação da sua substância assim como uma ideia é uma modificação dessa substância, assim como uma volição é uma determinação do mesmo ser. Os factos são o ponto de partida das ideias, cuja virtualidade está no espírito: em si são inertes e inexpressivos»


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As Doutrinas Filosóficas de Antero
Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX
«A verdade é que no fundo desta questão de filósofos, estava uma questão humana, da larga e fundamental importância humana. A metafísica, na sua absorvente dialéctica, é atreita a esquecer que os indivíduos não são abstracções, simples determinações lógicas duma ideia, mas seres reais, autónomos, cujo princípio de acção reside nas profundezas da sua própria natureza, constituindo um verdadeiro em si, distinto e irredutível, e não um momento transitório de alguma substância só e verdadeiramente existente na sua vaga universalidade. Mas estes protestos da consciência moral não iam apenas de encontro aos dogmatismos apriorísticos, iam também de encontro ao necessitarismo das ciências, estruturalmente mecanicistas e deterministas. De modo que o estudo do movimento filosófico nos trouxe até ao problema da liberdade: ponto singular onde todas as dificuldades desse pensamento se reúnem e enlaçam.
A antítese mecanismo-determinismo: espiritualismo-liberdade, é o ponto nodal da questão; se é possível resolver este antagonismo numa síntese superior, estará resolvido o problema de encontrar a síntese do pensamento moderno. Ora os dois factos mais notáveis da história da filosofia na segunda metade do século XIX foram a condenação de todo o apriorismo e, seguindo a reforma do espiritualismo pela crítica de Kant, a nova psicologia científica. A condenação do apriorismo dogmático pela ciência não ia contra o valor da Razão, nem implicava uma renúncia à especulação e à filosofia. Foi uma mudança de atitude: tentou-se uma filosofia da natureza de temperamento científico. A objectividade científica, desprezando as qualidades segundas, procura os factos últimos em simplicidade com que pudesse reconstruir o complexo do real; estes são determinações de espaço e tempo, eis porque o carácter da ciência é de ordem mecânica.
Mas do mecanismo sai necessariamente o determinismo, e é essa com efeito a segunda feição característica que a nova filosofia da natureza herdou da ciência, sua mãe. Ora as séries de fenómenos sucedem-se numa certa ordem de complicações: a forma do Universo é, pois, evolucionista. Aqui encontram-se duas formas de evolucionismo: a da filosofia idealista germânica, em que o superior requer e possui um aumento de ser, vindo da virtualidade infinita da ideia; a da filosofia mecanista em que o complexo resulta de meros arranjos cumulativos dos simples ou elementos. A evolução, neste ponto de vista, é propriamente um estado progressivo da complicação e nada mais. É, por conseguinte, só formal. No fundo, a evolução, segundo a filosofia científica da natureza, é uma aparência e nada contém em si de substancial: o substancial e o verdadeiramente existente são só aqueles elementos mecânicos de que tudo é feito, em que tudo se resolve e cuja complicação gera a fantasmagoria do mundo fenomenal. Esta concepção é, pois, incompleta.
Falta-lhe exactarnente o que falta à inteligência científica. O mecanismo é o máximo grau de abstracção de que a inteligência é, capaz dentro dos limites e com os dados da sensibilidade, mas é só isso. A verdadeira realidade, concreta, viva, espontânea, falta-lhe: faltam-lhe as ideias superiores, as que alumiam, interpretando-as, as inferiores, as fornecidas pela sensibilidade. De modo que o mecanismo é uma verdade fundamental, mas circunscrita, positiva dentro dos seus limites. Já vimos que estes são os da mesma inteligência científica. É a síntese do espírito moderno no terreno do conhecimento científico. Outros elementos do mesmo espírito a virão completar e ampliar. O criticismo bem como a nova psicologia não podem ver na alma essa substância de natureza excepcionalíssima e todavia real, mas apenas a unidade, quando não simplesmente a soma dos factos íntimos da consciência. Desagregado o substancialismo da alma, fica o facto consciência inabalável soberano a mostrar como não é possível tudo reduzir a movimentos e composições de movimentos.
A intensidade, a direcção e o encadeamento das forças que num dado momento actuam no universo, eis tudo quanto o mecanismo sabe, ou antes, quanto pode aspirar a saber. Ora nessa prodigiosa cadeia de movimentos matematicamente concatenados, o que o mecanismo ignora e ignorará sempre são as vontades, os pensamentos, os sentimentos, numa palavra, a actividade interna de todos esses seres, elementares ou não elementares, arrastados no giro da causalidade mecânica. A mecânica conhece, pois, as acções dos seres, mas não a actividade interna que as produz. O que a mecânica ignora e é condenada a sempre ignorar, conhece-o a consciência que se apreeende , pois, como verdadeira força-tipo. Na consciência sentimos que o espírito, da sensação à ideia e à volição, é sempre activo. ... uma sensação é uma modificação da sua substância assim como uma ideia é uma modificação dessa substância, assim como uma volição é uma determinação do mesmo ser. Os factos são o ponto de partida das ideias, cuja virtualidade está no espírito: em si são inertes e inexpressivos. O conhecimento é pois um facto íntimo e próprio do espírito, e o universo conhecido o produto da sua espontânea actividade». In Leonardo Coimbra, O Pensamento Filosófico de Antero de Quental, Guimarães Editores, Lisboa, 1991, ISBN 972-665-372-X.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT