Prefácio
«(…) A seu lado, frei Gaillard de Pomiès, O. P., desempenha o papel de assistente, de vigário ou de lugar-tenente.
É relegado para segundo plano, devido à proeminência local e à forte personalidade
do bispo da região. Alguns inquisidores de alta categoria exteriores à diocese
como Bernard Gui, Jean de Beaune e o normando Jean Duprat, vêm igualmente
honrar com a sua presença, uma vez por outra, as sessões mais pesadas do ofício de Pamiers. Encontra-se também,
entre os assessores, com fungo ora decorativa ora activa, todo um sortido local
e regiond: cónegos, monges de todas as regras e hábitos, juízes e jurisas
radicados na sede da diocese. A um nível inferior, encarregado das tarefas de
redacção (mas nunca das de decisão), agita-se o esquadrão dos notários è
dor escrivães cerca de uma quinzena de indivíduos. À sua cabeça, destaca-se o
tabelião-cura Guillaume Barthe; e depois Jean Strabaud, e o senhor Bataille de
la Penne; e vários escribas do condado de Foix. Finalmente, no escalão mais
baixo, está o pessoal menor ajuramentado: compreende meirinhos classificados de
servidores; mensageiros,
carcereiros, acompanhados das suas inevitáveis esposas que desempenham o papel
de carcereiras; encontramos também, neste bulício subalterno, denunciantes que
são por vezes de alto coturno, como Arnaud Sicre. As estatísticas telativas à actividade do ofício foram compiladas e depois publicadas, em 1910, numa obra notável de J. M. Vidal.
Eis alguns elementos; estes elucidam-nos sobre as condições em que foi
elabotado o nosso dossier. O tribunal
inquisitorial de Pamiers trabalha durante 370
dias, de 1318 a 1325. Estes 370
dias dão lugar a 578
interrogatórios. Estes desdobram-se em 418 comparências de arguidos e 160 de testemunhas. Estas centenas de sessões referem-se ao
todo a 98 causas ou dossiers. O
recorde de trabalho registou-se em 1320
(106 dias); comparando, verifica-se que houve 93 dias de trabalho em 1321,
55 em 1323, 43 em 1322, 42 em 1323, 42 em 1324, 22 em 1325. Na maioria parte do tempo teve a
sua sede em Pamiers; por vezes numa ou noutra localidade do condado de Foix, ao
sabor das deslocações do bispo.
Os 98 dossiers inquietaram ou
puseram em causa 114 pessoas, em cujo número predominam, em maioria, os
heréticos de tendência albigense. Entre estas 114 pessoas, 94 compareceram de
facto. No conjunto do grupo inquietado
contam-se alguns nobres, alguns sacerdotes, alguns notários; e sobretudo, uma
massa esmagadora de pessoas humildes, camponeses, artífices, pequenos comerciantes.
Dentre os 114 indivíduos arguidos ou inquietados, contam-se 48 mulheres. A
grande maioria, homens ou mulheres, é originária da região alta de Foix, ou Sabarthès, trabalhada pela propaganda
dos irmãos Authié (que foram missionários cátaros e cidadãos da pequena
cidade de Ax-les-Thermes); esta maioria sabarthesiana compõe-se de 92
pessoas, homens e mulheres. Entre elas, a nossa aldeia de Montaillou em Sabarthès fornece por si só 25 acusados;
delega, além disso, algumas testemunhas à teia do tribunal! Além disso, três
arguidos provêm da aldeia de Prades, limítrofe da anterior. No total 28
pessoas, cada uma das quais forneceu um testemunho substancial e por vezes
muito pormenorizado, são oriundas da minúscula região de Aillon (Prades +
Montaillou), na qual se radica a nossa monografia.
O processo canónico contra este ou aquele arguido, de Montaillou
ou de outro lugar é, em geral, provocado por uma ou várias denúncias. Estas são
seguidas de uma intimação judicial para comparência perante o tribunal de
Pamiers, intimação que é comunicada ao suspeito (no seu domicílio ou na
homília), pelo pároco do lugar de residência. No caso de o indivíduo assim
convocado não se dirigir voluntariamente a Pamiers para comparecer o bailio local (oficial do conde ou do
senhor) serve de braço secular. Persuade o arguido; escolta-o, se
necessário, até à sede da diocese. A comparência diante do tribunal do bispo
começa por um juraÍnento, que o acusado faz sobre o livro dos Evangelhos. Prossegue
sob a forma de um diálogo desigual. Jacques Fournier faz sucessivas
perguntas e manda precisar este ou aquele ponto ou pormenor. O acusado responde e fala de improviso. Um
depoimento pode com facilidade ocupar dez a vinte grandes folhas do nosso Registo ou mesmo mais. A questão segue
os seus trâmites sem que o estado de prisão seja necessariamente duradouro para
o acusado. Este pode ser encarcerado, entre os interrogatórios, numa das
prisões episcopais de Pamiers. Mas pode também gozar, durante o mesmo intervalo
de tempo, de períodos mais ou menos longos de liberdade provisória, durante os
quais é apenas obrigado a residir dentro dos limites da sua paróquia ou da sua
diocese. Em caso contrário, os meios de pressão mais variados vêm,
eventualmerrte, agravar a detenção preventiva, quando ela existe: visam levar o
acusado a confessar. Ao que parece, tais meios não se manifestam pela tortura
mas sim pela excomunhão do acusado, pelo seu encarceramento em regime rigoroso ou muito rigoroso (cela estreita, grilhões nos pés, alimentação a
pão escuro e água). Num único caso, que se refere ao processo falso
que os agentes franceses o obrigarão a instaurar aos leprosos, Jacques
Fournier mandará torturar as suas vítimas, a fim de obter delas confissões
delirantes, absurdas: envenamento das fontes com pó de sapo, etc. Em todos os
outros casos que forneceram a substância do nosso livro, o bispo limita-se a procurar
detectar o desvio real (e que, muitas vezes se revela ínfimo)». In
Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 à 1324, Editions
Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e Católicos numa aldeia francesa.
1294-1324, Edições 70, Lisboa.
Cortesia de Edições 70/JDACT