Vidas são Vidas
«(…) Das profissões decentes passara à caixa da graxa, à
guarda de automóveis ricos, à mudança de móveis, à revenda de bilhetes de futebol
ou cinema, ao transporte de malas, colagem de cartazes, à distribuição de
reclames, ao maço de lotarias. Entretanto serviu de modelo numa aula de
desenho, e esse ainda foi dos seus melhores períodos. Habituou-se a andar com o
boné sebento na mão, e a solicitar os fatos que antigos condiscípulos punham de
parte. Habituou-se, mas não se habituava de todo. Os antigos condiscípulos que
o favoreciam já lhe não estendiam a mão. Estendiam-na a indivíduos indignos,
que lhes não pediam esmola. Ele agradecia-lhes os favores, procurava disfarçar
a humilhação com algum dos seus ditos excêntricos, e, às vezes, tinha vontade
de lhes cuspir na cara. Aprendeu a ingratidão pela obrigação, que lhe impunham,
de se mostrar grato. O espírito dos seus ditos excêntricos descambava para o
amargo. Já, por vezes, esses ditos deixavam pouco divertidos os seus
benfeitores. Cada vez poderia contar menos com eles. Ainda se julga o Pedro do
colégio! Pela força das circunstâncias, as obras do acaso, ou a
necessidade de confraternização, ia tendo relações com gentes muito diversas. A
par dos falhados superiores, utopistas vencidos, miseráveis pitorescos e
artistas indigentes (dos que expõem quadros nos passeios ou os rifam, exibem
palhaçadas nas feiras, fazem, nos cafés, caricaturas de desconhecidos, andam
pelas festas com a tenda do D. Bibi) conhecera e conhecia não só aqueles
que vivem à margem da lei sendo, no fundo, homens como os outros, mas também
tarados perigosos, indivíduos simplesmente sem qualquer moral, malandrins e
malandrões do mais baixo estofo. A alguns destes ouviu gabarem-se de boas
relações com gentes de nível social muito acima. Por experiência ou observação
ficou sabendo como há de tudo, tudo que há nas outras capitais europeias ou nos
romances policiais, nessa pacata Lisboa em que nada parece acontecer senão
revoluçõezinhas familiares. E quem pensa que só pelas valetas de Alfama, do
Bairro Alto, da Mouraria, escorre essa
escória humana? Os que olham de baixo, entram pelas escadas de serviço,
e espiam os seus semelhantes por a vadiagem lhes dar ocasião, é que vêm como
pode essa escória aconchegar-se, lavando-se, perfumando-se, vestindo bem, nas
casas e ruas da mais vulgar boa aparência.
Tais relações comprometeram Pedro Sarapintado a ponto de se ver
envolvido em negócios escuros. Uma vez fora suspeito de carteirista. Custara-lhe
a justificar-se. Afinal o carteirista era um seu conhecido recente, com quem
passara a acompanhar por lhe parecer homem de verdadeiro interesse, e em quem
nem sonhava tais habilidades. Outra vez fora acusado de cumplicidade num assalto
a uma ourivesaria. Se os próprios culpados não houvessem testemunhado a sua
inocência, talvez não tivesse escapado. Andaste com sorte! disseram-lhe. Não
estranhavam muito que fosse condenado mesmo inocente. Nesta decadência
progressiva, gozou períodos de relativa prosperidade. Muito relativa: pouco a
pouco viera renunciando a todas as suas antigas exigências de conforto,
higiene, cultura. Satisfazendo-se cada vez com menos, já lhe era muito mais fácil
aceitar situações que dantes acharia inaceitáveis. Para quem dormiu debaixo dum
portal, qualquer tecto é um luxo. As suas prosperidades testemunhavam a sua
degradação. Nos momentos em que ainda vinha à tona o antigo Pedro, pensava que
toda a sua triste odisseia não podia passar de qualquer coisa como um sonho sinistro,
um pesadelo efémero. Ter-se-ia dado o
que se dera? Continuaria a
dar-se? Porquê, se a vida tinha tantas coisas belas, e tantos as desfrutavam? Como
quem atravessa a pé um túnel após um comboio que foge (com luzes dentro,
gente que parte para viagens, ou regressa a lares confortáveis e queridos),
um momento agitara os braços no ar lôbrego, sufocando sob os rolos de fumo, e
atirara um berro cujo eco debalde repercutira nas abóbadas viscosas». In
José Régio, A Velha Casa, Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.
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