quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A Velha Casa. Vidas são Vidas. José Régio. «Se os próprios culpados não houvessem testemunhado a sua inocência, talvez não tivesse escapado. ‘Andaste com sorte!’ disseram-lhe. Não estranhavam muito que fosse condenado mesmo inocente. Nesta decadência progressiva…»

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Vidas são Vidas
«(…) Das profissões decentes passara à caixa da graxa, à guarda de automóveis ricos, à mudança de móveis, à revenda de bilhetes de futebol ou cinema, ao transporte de malas, colagem de cartazes, à distribuição de reclames, ao maço de lotarias. Entretanto serviu de modelo numa aula de desenho, e esse ainda foi dos seus melhores períodos. Habituou-se a andar com o boné sebento na mão, e a solicitar os fatos que antigos condiscípulos punham de parte. Habituou-se, mas não se habituava de todo. Os antigos condiscípulos que o favoreciam já lhe não estendiam a mão. Estendiam-na a indivíduos indignos, que lhes não pediam esmola. Ele agradecia-lhes os favores, procurava disfarçar a humilhação com algum dos seus ditos excêntricos, e, às vezes, tinha vontade de lhes cuspir na cara. Aprendeu a ingratidão pela obrigação, que lhe impunham, de se mostrar grato. O espírito dos seus ditos excêntricos descambava para o amargo. Já, por vezes, esses ditos deixavam pouco divertidos os seus benfeitores. Cada vez poderia contar menos com eles. Ainda se julga o Pedro do colégio! Pela força das circunstâncias, as obras do acaso, ou a necessidade de confraternização, ia tendo relações com gentes muito diversas. A par dos falhados superiores, utopistas vencidos, miseráveis pitorescos e artistas indigentes (dos que expõem quadros nos passeios ou os rifam, exibem palhaçadas nas feiras, fazem, nos cafés, caricaturas de desconhecidos, andam pelas festas com a tenda do D. Bibi) conhecera e conhecia não só aqueles que vivem à margem da lei sendo, no fundo, homens como os outros, mas também tarados perigosos, indivíduos simplesmente sem qualquer moral, malandrins e malandrões do mais baixo estofo. A alguns destes ouviu gabarem-se de boas relações com gentes de nível social muito acima. Por experiência ou observação ficou sabendo como há de tudo, tudo que há nas outras capitais europeias ou nos romances policiais, nessa pacata Lisboa em que nada parece acontecer senão revoluçõezinhas familiares. E quem pensa que só pelas valetas de Alfama, do Bairro Alto, da Mouraria, escorre essa escória humana? Os que olham de baixo, entram pelas escadas de serviço, e espiam os seus semelhantes por a vadiagem lhes dar ocasião, é que vêm como pode essa escória aconchegar-se, lavando-se, perfumando-se, vestindo bem, nas casas e ruas da mais vulgar boa aparência.
Tais relações comprometeram Pedro Sarapintado a ponto de se ver envolvido em negócios escuros. Uma vez fora suspeito de carteirista. Custara-lhe a justificar-se. Afinal o carteirista era um seu conhecido recente, com quem passara a acompanhar por lhe parecer homem de verdadeiro interesse, e em quem nem sonhava tais habilidades. Outra vez fora acusado de cumplicidade num assalto a uma ourivesaria. Se os próprios culpados não houvessem testemunhado a sua inocência, talvez não tivesse escapado. Andaste com sorte! disseram-lhe. Não estranhavam muito que fosse condenado mesmo inocente. Nesta decadência progressiva, gozou períodos de relativa prosperidade. Muito relativa: pouco a pouco viera renunciando a todas as suas antigas exigências de conforto, higiene, cultura. Satisfazendo-se cada vez com menos, já lhe era muito mais fácil aceitar situações que dantes acharia inaceitáveis. Para quem dormiu debaixo dum portal, qualquer tecto é um luxo. As suas prosperidades testemunhavam a sua degradação. Nos momentos em que ainda vinha à tona o antigo Pedro, pensava que toda a sua triste odisseia não podia passar de qualquer coisa como um sonho sinistro, um pesadelo efémero. Ter-se-ia dado o que se dera? Continuaria a dar-se? Porquê, se a vida tinha tantas coisas belas, e tantos as desfrutavam? Como quem atravessa a pé um túnel após um comboio que foge (com luzes dentro, gente que parte para viagens, ou regressa a lares confortáveis e queridos), um momento agitara os braços no ar lôbrego, sufocando sob os rolos de fumo, e atirara um berro cujo eco debalde repercutira nas abóbadas viscosas». In José Régio, A Velha Casa, Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.

Cortesia de INCM/JDACT