terça-feira, 19 de novembro de 2013

Se Isto é um Homem. Primo Levi. Tradução de Simonetta Neto. «Assim morreu Emília, que tinha três anos; porque aos alemães parecia evidente a necessidade histórica de matar os filhos dos judeus. Emília, filha do engenheiro Aldo Levi, de Milão, que era uma criança curiosa, ambiciosa, alegre e inteligente»

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A Viagem
«(…) Em menos de dez minutos, todos nós, homens válidos, fomos reunidos num grupo. O que aconteceu aos outros, às mulheres, às crianças, aos velhos, não pudemos esclarecer nem naquela altura nem depois: a noite engoliu-os, pura e simplesmente. Hoje, todavia, sabemos que, naquela escolha rápida e sumária, avaliara-se se cada um de nós podia ou não trabalhar utilmente para o Reich; sabemos que nos campos, respectiyamente de Buna-Monowitz e Birkenau, só entraram, do nosso comboio, noventa e seis homens e vinte e nove mulheres e que de todos os outros, num total de quinhentos, nem um se encontrava vivo dois dias depois. Sabemos também que nem sempre este, embora ténue, princípio de discriminação em hábeis e inábeis foi seguido e que, sucessivamente, se adoptou muitas vezes o sistema mais simples de abrir as portas dos vagões, sem advertências nem instruções aos recém-chegados. Entravam para o campo os que o acaso fazia descer de um lado do comboio; iam para o gás os outros.
Assim morreu Emília, que tinha três anos; porque aos alemães parecia evidente a necessidade histórica de matar os filhos dos judeus. Emília, filha do engenheiro Aldo Levi, de Milão, que era uma criança curiosa, ambiciosa, alegre e inteligente; a ela, durante a viagem no vagão cheio de gente, o pai e a mãe conseguiram dar banho numa tina de zinco, em água morna que o degenerado maquinista alemão aceitara deixar pingar da locomotiva que nos arrastava a todos para a morte. Desapareceram assim num instante, traiçoeiramente, as nossas mulheres, os nossos pais, os nossos filhos. Quase ninguém teve oportunidade de se despedir deles. Vimo-los durante algum tempo como uma massa escura na outra ponta do cais, depois deixámos de os ver. Surgiram entretanto, iluminados pelos faróis, dois grupos de estranhos indivíduos. Avançavam em formação, em filas de três, com um curioso passo arrastado, a cabeça descaída para a frente e os braços rígidos. Na cabeça traziam um boné ridículo e vestiam um casaco comprido às riscas, que mesmo de noite e de longe se via estar sujo e rasgado. Desenharam um amplo círculo à nossa volta, de forma a não se aproximarem e, em silêncio, começaram a mexer nas nossas bagagens e a subir e descer dos vagões vazios. Olhávamo-nos uns aos outros sem uma palavra. Tudo era incompreensível e louco, mas uma coisa tínhamos percebido: era esta a metamorfose que nos esperava. Amanhã, também nós seríamos como eles.
Sem saber como, encontrei-me dentro de um camião com mais trinta pessoas; o camião partiu na noite a grande velocidade; estava coberto e não se podia ver para o exterior, mas pelos solavancos percebia-se que a estrada tinha muitas curvas e covas. Estaríamos sem escolta?... atirar-se? Demasiado tarde, demasiado tarde, estávamos todos destinados a ir até ao fundo. De resto, cedo nos apercebemos de que não estamos sem escolta: trata-se de uma estranha escolta. É um soldado alemão carregado de armas: não o vemos porque a escuridão é cercada, mas sentimos o contacto duro com ele todas as vezes que um solavanco do veículo nos atira a todos num molho para a direita ou para a esquerda. Acende uma lanterna de bolso e, em vez de gritar Ai de vós, almas perdidas, pergunta-nos gentilmente um a um, em alemão e em língua franca, se temos dinheiro ou relógios para lhe dar, dado que já, não iremos precisar deles. Não é uma ordem, não é do regulamento: vê-se bem que se trata de uma pequena iniciativa privada do nosso Caronte. O facto suscita em nós raiva e riso e um estranho alívio.

No Fundo
A viagem não durou mais de vinte minutos. Depois, o camião parou, viu-se uma grande porta, encimada por umas palavras fortemente iluminadas (a lembrança destas palavras ainda me assalta nos sonhos): ARBEIT MACHT FREI, o trabalho liberta. Descemos, mandaram-nos entrar para um local amplo e vazio, fracamente aquecido. Temos tanta sede! O débil barulho da água nos radiadores torna-nos ferozes: não bebemos há quatro dias. Porém, existe uma torneira: tem em cima um letreiro, no qual se diz que é proibido beber porque a água está poluída. Tretas, parece-me óbvio que o letreiro é um engano, eles sabem que estamos a morrer de sede e põem-nos num local onde há uma torneira que diz Wassertrinken verboten. Eu bebo, e encorajo os meus companheiros a fazer o mesmo; mas tenho de cuspir, a água está morna e adocicada, cheira a pântano». In Primo Levi, Se Questo è um Uomo, Einaudi, Turim, 1958, Se Isto é um Homem, 1998, Tradução de Simonetta Neto, 10ª edição, 2013, Teorema, ISBN 978-972-695-945-8.

Cortesia de Teorema/JDACT