Pedro, Inês e a Fonte dos Amores
«Notas críticas soltas, sobre esse assunto, já quase exaustivamente
tratado por penas primorosas, eis o que vai constituir a minha contribuição ao
monumento literário erigido pelos melhores Camonistas de hoje, a fim de
celebrar o … Centenário de Luís de Camões. Notas
críticas sobre a tragédia de amor, suave e feroz, pela qual melhor do que por
nenhuma outra se documenta perante o mundo inteiro, o temperamento, a psique da
nação de apaixonados que, segundo fama várias vezes secular, se mantém de amor,
morre de amor, ou mata delirando amorosamente. Notas críticas soltas que eu, de mais a mais, já anteriormente
espalhei em escritos meus. Mas como não fossem aproveitadas nos trechos de
história postos em arte por Antero de Figueiredo no Grande Desvairo nem na Iconografia
dos Túmulos de Alcobaça, de M. Vieira Natividade, nem tão pouco no belo
estudo que Reinaldo Santos publicou na Lusitânia sobre o mesmo tema, reúno-as
num feixe para, com ele na mão, me incorporar no cortejo organizado em honra do
excelso Poeta que fez da Vida, da Morte, e da Memória de Inês de Castro o
episódio mais terno e delicado d'Os
Lusíadas tornando lendárias e mundiais as histórias da Fonte das Lágrimas e da Degolação.
NOTA: Os Lusíadas, III, oitavas 118-135. As palavras do Poeta
que afirma que os matadores banharam as espadas no colo de Inês e no seu seio, as brancas flores que ela dos olhos seus
regadas tinha, deram margem, de resto, a controvérsias. Sem cepo. Antero de Figueiredo é o único
escritor que fala dum cepo armado ad hoc
no pátio do Paço de Santa Clara.
Mas seria realmente degolada Inês?
Ou foi apunhalada? Foi o algoz
como executor oficial das Justiças de el-rei que com o seu cutelo separou do
colo de alabastro a linda cabeça de cabelos ruivos
e olhos verdes? Ou foi o peito de Inês trespassado pelas espadas (estoques) dos três ministros
e privados de Afonso o Bravo, cujos
bárbaros corações o vingador apontou e castigou também barbaramente, alguns
anos depois, à moda da Idade Média como verdadeiros matadores da amada? A lenda, a poesia portanto, que de há
tanto tornou internacional de nacional o
caso triste e digno de memória assenta o segundo processo. A historiografia
coeva, pelo contrário, simples relatadora de factos ainda não feitos arte ou
estilizados, atesta o segundo (em lugar de espadadas
alguns autores tardios empregam estocadas).
Rui de Pina, o cronista oficial e o compilador Acenheiro, algo posterior, empregam
exclusivamente termos vagos e gerais como morte
e matar. Mataram-na. O rei
mandou matá-la.
A Crónica de D. Afonso IV fonte de ambos, perdeu-se. Há todavia
partes do relato dela no Capítulo 27 da Crónica de D. Pedro: Como el-rei Pedro de Portugal disse por
D. Enes que fôra sua mulher. - Aí diz: … já tendes ouvido compridamente onde falamos da morte de D. Enes a
razão porque a el-rei Afonso matou e o grande desvairo que entre ela e este rei
Pedro, sendo então infante, ouve por este aso.
Restam também, na Crónica de D. João I, os importantes
capítulos relativos àquelas Cortes em que João das Regras expôs a sua nenhuma
fé no juramento e no casamento de Pedro
com Inês. Neles não se encontram senão os mesmos termos vagos (matar e morte). Nos dizeres latinos do Breve Cronicon Alcobacense, corresponde
igualmente a matou o sinónimo occidit (matar não provém de mactare, como rematar e arrematar
provém do árabe mate morto, usado sobretudo
no jogo do xadrez. Xeque mate significa o rei está morto): Era N.º CCC.o LWX.a
III.o, VII dies Januari occidit rex alfonsus dominam agnetem
Colimbrie. Nos antigos Livros de Linhagens, acrescentados
até o fim da primeira dinastia, Inês
não surge senão como a que matou el Rei Affonso. A mesma fórmula emprega o
Castelhano Pero Lopez Ayala (1332-1407) na sua Cronica
de Pedro el Cruel, falando verdade, mas não a dizendo toda,
encobrindo-a pelo contrário com estilização ou idealização discreta.
Dois depoimentos de testemunhos há todavia, quase coevos dos factos e
independentes um do outro, em que às claras se fala de degolação. E segundo a sentença proverbial, dois testemunhos são
suficientes para autenticar qualquer facto. Durch
Zweier Zeugen Mund alle Wahrheit kund. Um desses testemunhos foi lavrado,
como de costume, pela pena de um cronista; o outro pelo escopro de um estatuário.
O primeiro está num pergaminho de Santa Cruz de Coimbra: no chamado Livro
da Noa, em cujos registos sucessivos e assaz desordenados, figura no
fim a nótula seguinte: … era MCCC
nonagesima tertia VII dies januarii decolata fuit Dona Ines per mandatum domini,
Afonsi IIII. A arte plástica confirma este veredicto, pelo menos na leitura
comum. É no calcário fino dos túmulos alcobacenses, essa maior maravilha de
arte que em Portugal se produziu no século XIV e ainda hoje encanta olhos que
sabem ver, apesar de corroída pela acção do tempo e destroçada pelo vandalismo
da soldadesca do general Erlon em 1810, é nesse calcário fino de um dos
túmulos alcobacenses que se lê como numa Bíblia
Pauperum a cena da degolação. Onde? Numa das pétalas da rosácea
que (fora do comum em todos os sentidos) guarnece o lado da cabeceira no
sarcófago de Pedro. Fora do comum,
porque em dezoito quadrinhos profanos,
seis no círculo interior, doze no exterior, o artista tentou representar
cenas íntimas da vida real e da morte de Inês». In Carolina
Michaelis de Vasconcelos, Artigo publicado na Revista Lusitânia, volume II,
compilado em Dispersos, Originais Portugueses, I Vária (1º volume), Lisboa,
Edições Ocidente, 1969.
Cortesia de E. Ocidente/JDACT