sábado, 2 de novembro de 2013

Maria Madalena das páginas da Bíblia. Para a Ficção. Textos Críticos. Organização de Salma Ferraz. «Jesus vivia rodeado de mulheres e concedeu a elas papel relevante no seu ministério, alterando a estrutura patriarcal vigente na época. Madalena, Maria, irmã de Marta, Joana, Suzana, a mulher cananeia, a Samaritana e dezenas de outras incluindo sua mãe, Maria»

Cortesia de Vera Sabino e jdact

Maria Magdalena. A antiodisseia da discípula amada
«(…) Notamos algo interessante nos relatos do evangelista Lucas no capítulo 8, e no evangelista Marcos no capítulo 16. Marcos, ao narrar o aparecimento de Jesus para Madalena, acrescenta: havendo ele ressuscitado de manhã cedo no primeiro dia da semana, apareceu primeiro a Maria Madalena, da qual expelira sete demónios. Os dois evangelistas fazem questão absoluta de reafirmar a condição de ex-endemoninhada de Madalena, e Marcos o faz de maneira enfática. Por que os dois evangelistas insistiam no passado doentio dessa mulher? Mistérios [...] Voltando ao capítulo 7 do Evangelho segundo São Lucas, temos o relato do episódio da pecadora que ungiu os pés de Jesus. Sobre esta mulher, o evangelista afirma que era pecadora, que entrou na casa do fariseu sem ser convidada, portando um vaso de alabastro cheio de unguento. Após quebrá-lo, o que denota desprendimento das coisas materiais, prostra-se perante Jesus chorando e regando os pés do Mestre com suas lágrimas, enxugando-os com seus cabelos, beijando-os e ungindo-os com unguento. Para a mentalidade patriarcal daquela época, isso foi um escândalo, a quintessência do feminino: perfumes, lágrimas, choro, cabelos soltos. O texto não esclarece que tipo de pecado ela havia cometido, mas, como era mulher, logo, pressupôs-se que era uma adúltera. Cabe esclarecer que, no primeiro século, se uma mulher apenas conversasse com outro homem que não fosse seu marido, ela já era considerada pecadora. Em várias outras partes dos Evangelhos, aparecem homens dos quais são perdoados os pecados, pecados estes que não são especificados, mas, nem por isso, aqueles são taxados de prostitutos. Essa mulher, que é denominada de pecadora, que não é nomeada, que ungiu os pés de Jesus, usurpando uma prerrogativa masculina e sacral, não era Maria Madalena.
Ela não esteve aos pés de Jesus nessa cena da unção, nem os banhou com lágrimas e óleo, tampouco os enxugou com seus cabelos. Cabe lembrar que a única cena em que Madalena aparece aos pés de Jesus é narrada somente pelo evangelista Mateus. Ressaltamos que esta é a única vez em que Madalena aparece abraçada aos pés de Jesus e que esta não é a mesma cena da unção, mas ocorre por ocasião da ressurreição, e ela não está só, está acompanhada por outra mulher. As duas mulheres abraçam os pés de Jesus e não há menção alguma de cabelos, beijos e perfumes. Em Mateus 28, temos o relato desta cena: Ao findar do sábado, ao entrar o primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro [...] E eis que Jesus veio ao encontro delas e disse: Salve! E elas, aproximando-se, abraçaram-lhe os pés e o adoraram. Os Evangelhos, além de textos teológicos, não deixam de ser tentativas biográficas da vida de Jesus, cujas autorias são atribuídas a Lucas, Marcos, Mateus e João e que foram escritos entre os anos 70 e 90 de nossa era. Não há originais destes Evangelhos e as cópias mais antigas são os denominados códice Vaticanus e o códice Sinaïticus. Estes códices, por meio de análises científicas, foram datados como pertencentes ao século IV e foram encontrados em 1859 no Mosteiro de Santa Catarina do Monte Sinai, Egipto, por Constantino von Tischendorf. Lembramos que as tradições orais antecederam a escrita dos Evangelhos e provavelmente as narrativas orais alteraram em muito a história das mulheres que seguiram a Jesus.
Fernanda Camargo-Moro afirma que hoje já se sabe que os Evangelhos canónicos não são de primeira mão, isto é, os textos que lemos hoje não nos chegaram sem retoques, ou acréscimos. Cada um deles é o resultado de um esforço editorial longo, através das sucessivas camadas de informações e sua evolução. A história dessas mulheres já chegou alterada e foi interpretada, filtrada pelos evangelistas que eram homens. O facto é que, apesar do androcentrismo dos evangelistas, ainda existem muitas mulheres nos Evangelhos: Jesus vivia rodeado de mulheres e concedeu a elas papel relevante no seu ministério, alterando a estrutura patriarcal vigente na época. Citamos apenas algumas: Madalena, Maria, irmã de Marta, Joana, Suzana, a mulher cananeia, a Samaritana e dezenas de outras fiéis seguidoras que foram curadas por ele. Falta aqui mencionarmos, naturalmente, sua mãe, Maria.
O erro de exegese ocorreu no Sermão proferido na Páscoa do ano 591 pelo papa Gregório, O Grande, que, além de adjectivar a pecadora de Lucas 7 como prostituta, confundiu-a com Madalena, cuja libertação e conversão estão narradas na sequência, no capítulo 8 de Lucas. Na realidade, o papa Gregório anunciou que Maria Madalena, a mulher pecadora, e Maria de Betânia eram uma só. Nasceu deste erro a ideia de que Madalena fosse uma prostituta. Esta mulher pecadora de Lucas 7 foi identificada pelo Evangelista João como Maria de Betânia, irmã de Lázaro (esta identificação não se efectiva nos outros Evangelhos). Acrescentou-se a isso a imagem da mulher que quase fora apedrejada por adultério, cujo relato é feito pelo evangelista João e a qual Jesus salvou ao sentenciar para os escribas e fariseus: aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra. Esta mulher adúltera não é nomeada. Interessante que a primeira e única vez que temos uma escritura crística, em que Jesus aparece escrevendo, Ele o faz diante de uma mulher condenada por adultério, portanto, pecadora. O que Ele escreveu, só ela, uma mulher, leu e mais ninguém no mundo. Cabe aqui uma pergunta: onde estava o homem adúltero? Mistérios!

In Salma Ferraz, organização, Maria Madalena das páginas da Bíblia para a Ficção, Textos Críticos, Eduem, UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN 978-85-7628-334-8

Cortesia de Eduem/JDACT