quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Ficções. Jorge Luís Borges. «A nota parecia precisar as fronteiras de Uqbar, mas os seus nebulosos pontos de referência eram rios e crateras e cordilheiras dessa mesma região. Lemos, por exemplo, que as terras baixas de Tsai Khaldun e o delta do Axa definem a fronteira do Sul…»

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O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam (1941). Tlön, Uqbar, Orbis Tertius
«Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia a descoberta de Uqbar. O espelho inquietava o Fundo de um corredor numa quinta da calle Gaona, em Ramos Mejía; a enciclopédia falaciosamente chama-se The Anglo-American Cyclopaedia (Nova lorque, 1917) e é uma reimpressão literal, mas também tardia, da Encyclopaedia Britannica de 1902. O facto ocorreu há uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo nessa noite e demorou-nos uma longa polémica sobre a elaboração de um romance na primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os acontecimentos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores, a pouquíssimos leitores, o adivinhar uma realidade atroz ou banal. Do fundo remoto do corredor, espreitava-nos o espelho. Descobrimos (a altas horas da noite esta descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar havia declarado que os espelhos e a cópula eram abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem desta memorável sentença e respondeu-me que The Anglo-American Cyclopaedia a registava no seu artigo sobre Uqbar. A quinta (que alugáramos mobilada) possuía um exemplar dessa obra. Nas últimas páginas do volume XLVI deparámos com um artigo sobre Upsala; nas primeiras do XLVII, com um sobre Ural-Altaic Languages, mas nem uma palavra sobre Uqbar.
Bioy, um tanto irritado, consultou os tomos do índice. Esgotou em vão todas as versões imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ookbar, Oukbahr... Antes de sair, disse-me que era uma região do Iraque ou da Ásia Menor. Confesso que assenti com certo incómodo. Conjecturei que esse país indocumentado e esse heresiarca anónimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma frase. O exame estéril de um dos atlas de Justus Perthes fortaleceu a minha dúvida. No dia seguinte Bioy telefonou-me de Buenos Aires. Disse-me que tinha diante dos olhos o artigo sobre Uqbar, no volume XLVI da Enciclopédia. Não constava o nome do heresiarca, mas a notícia da sua doutrina, formulada em palavras quase idênticas às repetidas por ele, embora, talvez, literariamente inferiores. Recordara ele: copulation and mirrors are abominable. O texto da Enciclopédia dizia: … para um desses gnósticos, o visível universo era uma ilusão ou (mais precisamente) um sofisma. Os espelhos e a paternidade são abomináveis (mirrors and fatherhood are hateful) porque o multiplicam e o divulgam. Disse-lhe, sem faltar à verdade, que gostaria de ver esse artigo. Daí a poucos dias trouxe-mo. O que me surpreendeu, porque os escrupulosos índices cartográficos da Erdkunde de Ritter ignoravam totalmente o nome de Uqbar.
O volume que trouxe Bioy era de facto o XLVI da Anglo-American Cyclopaedia. No ante-rosto e na lombada a indicação alfabética (Tor-Ups) era a do nosso exemplar, mas em vez de 917 páginas constava de 921. Estas quatro páginas adicionais compreendiam o artigo sobre Uqbar: não previsto pela indicação alfabética. Verificámos depois que não havia outra diferença entre os volumes. Os dois são reimpressões da décima Encyclopaedia Britannica. Bioy adquirira o seu exemplar num de muitos leilões. Lemos com certo cuidado o artigo. A passagem recordada por Bioy era talvez a única surpreendente. O resto parecia muito verosímil, muito ajustado ao tom geral da obra e um tanto maçador. Ao relê-lo, descobrimos sob a sua rigorosa escrita uma impressão fundamental. Dos catorze nomes que figuravam na parte geográfica, só reconhecemos três, Khorassão, Arménia e Erzerum, interpolados no texto de maneira ambígua. Dos nomes históricos, um só: o impostor Esmerdis, o mago, invocado mais como uma metáfora. A nota parecia precisar as fronteiras de Uqbar, mas os seus nebulosos pontos de referência eram rios e crateras e cordilheiras dessa mesma região. Lemos, por exemplo, que as terras baixas de Tsai Khaldun e o delta do Axa definem a fronteira do Sul e que nas ilhas desse delta procriam os cavalos selvagens. Isto no princípio da página 918. Na secção histórica (página 920) soubemos que devido às perseguições religiosas do século XIII, os ortodoxos procuraram refúgio nas ilhas, onde perduram ainda os seus obeliscos e onde não é raro exumar os seus espelhos de pedra. A secção língua e literatura era curta. Um único aspecto memorável: anotava que a literatura de Uqbar era de carácter fantástico e que as suas epopeias e lendas nunca se referiam à realidade, mas às duas regiões imaginárias de Mlekhnas e de Tlön... A bibliografia enumerava quatro volumes que até agora não encontrámos, embora o terceiro - Silas Haslam: History of the Land Called Uqbar, 1874, figure nos catálogos da livraria de Bernard Quaritch. O primeiro, Lesbare und Lesenswerthe Bemerhungen über das Land Ukkbar in Klein-Asien, data de 1641, e é obra de Johannes Valentinus Andreä. O facto é significativo: poucos anos depois, dei com este nome nas inesperadas páginas de Quincey (Writings, décimo terceiro volume) e soube que era o de um teólogo alemão que nos princípios do século XVII descreveu a imaginária comunidade da Rosa-Cruz, que outros fundaram a seguir, à imitação do que ele prefigurara». In Jorge Luís Borges, Ficções, Maria Kodama, 1989, Teorema, Colecção Mil Folhas, Público, Porto, 2003, ISBN 84-96075-62-1.

Cortesia Público/JDACT