«Ainda não há muito
tempo se admitia que, juntamente com algumas vagas crenças, de sabor popular, a
onomástica constituísse a única sobrevivência,
na Região do Barroso, do culto popular
desta santa medieval do séc. X (do estimado amigo, Geraldo Coelho Dias,
D. Sancho I, peregrino e devoto de
Santa Senhorinha de Basto). Sobrevivência nortenha e regional, sendo
ambos estes traços, como é natural, facilmente verificáveis na vizinha Região
de Basto, aqui subsiste todavia, com alguma vivacidade, o culto a Senhorinha,
patente nas promessas, ex-votos e asseio que sempre rodeiam o seu túmulo,
albergado em modesto mas prestigioso templo paroquial, outrora conhecido como
matriz, ou até, segundo Pinho Leal, como sé de Basto, e no qual se continuam a
perpetuar a memória da morada terrena escolhida por esta monja, sua vida e
virtudes. Sabendo-se que o culto eclesiástico se iniciou em 1130, por autoridade do arcebispo Paio
Mendes, num tempo em que os prelados canonizavam nas suas dioceses, que a
introdução da festa em calendários litúrgicos portugueses data do século XIII,
e que a veneração a Santa Senhorinha arrastou junto do seu túmulo, incontestavelmente, grande cópia de
peregrinações e romeiros, durante a Idade Média, gostaríamos de focalizar a
nossa atenção na época moderna, para tentar percepcionar impulsos de
continuidade ou descontinuidade nesse culto, até porque, um pouco
surpreendentemente, a festa de Santa Senhorinha só foi introduzida no
Breviário Bracarense de
Rodrigo Moura Teles, no ano de 1724.
Propomo-nos trazer hoje
à colação um outro vector de abordagem, porventura indiciador útil e fornecedor
de elementos exemplificativos da atenção moderna consagrada a Senhorinha,
no quadro do hagiológio nacional, e consistindo na exploração da memória literariamente construída
da Santa. Descontados conhecidos e incontornáveis textos de hagiógrafos consagrados,
que teremos ocasião de evocar, está praticamente por fazer o levantamento deste
tipo de testemunhos. Também nós nos limitamos aqui à indicação de uma pista de
investigação, já que não logramos organizar, para já, certamente mais por falta
de prospecção do que por raridade de dos textos, um corpus literário digno desse nome. Por agora, optamos
por centrar a nossa atenção, num exemplo de composição literária muito
significativo de interesse por Senhorinha, sua vida e milagres,
arrancado a um dos nossos cancioneiros barrocos, a Fénix Renascida, e a um dos seus mais consagrados autores, frei
Jerónimo Baía. Referimo-nos à Loa
que este poeta escreveu Em louvor
de Santa Senhorinha Portugueza.
Autor de Varios Romances e Decimas, a diferentes assuntos, também a Loa consta, como diz
Diogo Barbosa Machado, de um Romance muito
largo». Está escrito em castelhano, mas da parte de frei Jerónimo Baía,
prestigioso pregador de Afonso VI, ou até mais provavelmente do organizador da Fénix Renascida, quis-se frisar o carácter português
desta santa, apesar de muito anterior à nacionalidade. Professo em Tibães (1643),
o monge-poeta, chamado outrossim ao desempenho das funções de cronista de S.
Bento, invocava uma glória nacional e da congregação, mesmo se usava o
castelhano, ele que, de resto, em verso celebrou também êxitos das armas
portuguesas na Guerra da Restauração.
O reivindicado carácter nacional desta santa parece acompanhar as tendências gerais
do sentimento religioso e do afã hagiográfico em Portugal, à época, com notório
investimento, por parte da coroa, no favorecimento do culto e festas aos santos
mais fácil e popularmente reconhecíveis como tutelares e protectores do Reino,
e na nacionalização daqueles outros que, como Santa Senhorinha, aparentemente
se prestavam menos a tal emblematização. Uma tendência nacionalizante que
vinha, afinal, de trás, como vemos com um curioso exemplo, dado pelo próprio
duque de Bragança, futuro João IV, escrevendo em 30 de Abril de 1625, de Vila Viçosa, ao padre Jorge
Ribeiro, então abade da Freguesia de Santa Senhorinha de Basto, ao pedir-lhe
informações sobre as comemorações e festas a Santa Senhorinha, S. Gervásio e
Santa Godinha, levadas a efeito naquela igreja, onde se veneravam os seus túmulos,
porque também desejava festejar a
estes sanctos portuguezes na sua capela.
Apresentando-se sob as
vestes literárias de rato pobre, como
aquel que Horacio pinta (alusão à fábula do rato do campo e do rato
da cidade, da sátira do Venusino), frei Jerónimo Baía pede ao seu público
benevolência, Sus mercedes mucho
callen / Sus mercedes nada digan, / Pues mas urbana mi Musa / Se lo pide en
cortesia, para a breve Loa que se propõe recitar: Oid del Raton un rato / la Loa mas
exquisita; / Es cosa del otro mundo / Que al fin es de le Bahia...» In Pedro
Vilas Boas Tavares, Senhorinha de Basto, Memórias Literárias da Vida e Milagres
de uma Santa Medieval, Via Spiritus 10,
2003.