quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal. Pedro Calafate. «Os sistemas sintácticos da razão são apenas formalizações extremas de uma retórica imbuída, também ela, do consenso geral do imaginário, uma vez que o racionalismo não é mais do que uma estrutura polarizante…»

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Ciência e Religião. Natureza e Símbolo
«(…) Do que vimos dizendo não é exemplo menos significativo, para o caso que aqui mais nos interessa, o par ciência/progresso, de que, em parte, se nutriu o século XVIII, o qual depende, em última análise, de um forte sistema dinâmico de mitos e arquétipos. De facto, herdámos até certo ponto o purismo de um regime científico de pensamento, implicando uma divisão entre uma natureza mítica e simbolicamente considerada, a qual se tem por falsa com relação a uma natureza verdadeira, situada do lado do objecto. Divisão que não deixou de ser trágica, por destruir o acordo fundamental entre o Eu e o Mundo, submerso, este, pela força totalitÍtria do regime científico, que se apresenta assim com todos os ingredientes do mito. Este pretenso afrontamento entre mito e razão foi, como escreveu Carlos Silva, uma consequência da concepção iluminista da filosofìa racional, instaurando uma assimetria artificial das faculdades humanas, com continuidade nas múltiplas tentativas fenomenológicas, psicanalíticas e estruturalistas para compreender racionalmente o mito. Só que, tal corrente, por ironia ou sem ela, veio afinal a representar um outro mito, o mito da desmitificação, pois que o seu resultado foi o de provocar uma espécie de contágio mítico da própria razão. O sentido para que apontam sectores imporantes da antropologia contemporânea é o da necessária revisão das nossas concepções sectárias de verdade, fazendo depender a verdade, do símbolo da sua força vital, a qual mais não representa do que essa capacidade de nos integrar numa totalidade, em virtude de uma função de recoúecimento ontológico. A vida, como o espírito, tendem para o equilíbrio, são animados por um movimento essencial que os conduz para a estabilidade e para a unidade. É essa a função vital do símbolo, actualizando uma potencialidade essencial do ser, mediante a qual reduz o fragmentário, por um imperativo de integração num todo mais vasto. Graças sobretudo ao símbolo, escreveu Mircea Eliade, [...] a existência autêntica do homem arcaico não se reduz à existência fragmentada e alienadado do homem civilizado do nosso tempo.
O símbolo não representa, pois, um grau inferior de verdade, porque um erro deixa imediatamente de o ser, a partir do momento em que o podemos considerar como vital, na base de uma compreensão ampla do humano.A vocação do espírito é, também, a de uma insubordinação contra a morte, por isso que existe, no fundamento da consciência humana, um fascínio que supera em muito a aventura mortal e interdiz a alienação do espírito numa pura e simples acomodação objectiva. Trata-se, escreve G. Durand, de um acto negativo que, nestes termos, constitui a imagem, mas esse negativo é poder soberano da liberdade do espírito, ele mais não é do que negação espiritual, recusa total do vazio existencial, representado pelo tempo, e recusa da alienação desesperada no sentido próprio objectivo. O sentido supremo da função fantastica, dirigida contra o nosso destino mortal é, então, o eufemísmo. O símbolo representa, pois, um poder verdadeiramente metafísico que, anulando o espaço e o tempo, constitui, parafraseando G. Durand, uma reserva infinita de eternidade. Nestes termos, o símbolo não é mais encarado como uma espécie de juventude do conhecimento científico, um pouco à maneira de Descartes, nem tão-pouco é interpretado como desempenhando, na prática, um simples papel de refúgio afectivo, sentimental ou estético: não lhe cabe o estatuto de ornamento de um discurso, onde a verdade se acoitaria, dele se distinguindo. O que seria aqui de sublinhar, como resultado de sectores importantes da reflexão contemporânea, é o esbatimento da radicalidade de fronteiras entre o sentido proprio e o sentido figurado, surgindo-nos o primeiro como um caso particular do segundo. O sentido próprio tem de encarar-se já como um símbolo restrito, pois os sistemas sintácticos da razão são apenas formalizações extremas de uma retórica imbuída, também ela, do consenso geral do imaginário, uma vez que o racionalismo não é mais do que uma estrutura polarizante, entre muitas outras, próprias do campo das imagens». ». In Pedro Calafate, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800), Estudos Gerais, Série Universitária, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994, ISBN 972-27-0700-0.

Cortesia INCM/JDACT